‘Como você atira sabendo que está ao redor de uma escola?’, diz representante da ONU no Rio; veja entrevista

Enviado por / FonteExtra, por Camila Araujo

Najat Maalla M’jid, representante das Nações Unidas sobre violência contra crianças se reuniu com parentes de vítimas de confrontos para entender como a insegurança afeta os moradores

Pela primeira vez no Brasil, a representante especial do secretário-geral das Nações Unidas sobre a Violência contra Crianças, a marroquina Najat Maalla M’jid, se reuniu no Rio com parentes de vítimas e representantes do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) e da Comissão de Combate ao Racismo da Câmara Municipal do Rio. A partir dos relatos que ouviu, ela deve apresentar sugestões aos governos municipal, estadual e federal sobre a violência que atinge as crianças. Em solo fluminense, ela ressaltou que a situação no Rio tem especificidades porque é diversa. “Aqui você tem violência armada, doméstica, sexual, física, emocional, punições corporais, gravidez precoce”.

O que motivou sua visita ao Rio para esta reunião?

O Brasil é um país comprometido em acabar com a violência contra crianças e este ano está apresentando sua segunda revisão nacional dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS). Um deles trata de homicídios, e outro, de todas as formas de violência. Para mim, é importante conhecer todas as pessoas envolvidas na elaboração, na implementação e no acompanhamento de políticas voltadas para o bem-estar e a proteção infantil e contra todas as formas de violência e exploração. Para entender as especificidades da violência armada, eu preciso ouvir os jovens e os parentes de vítimas, os protagonistas desse contexto e também os atores da solução. O desafio do Brasil é que, sim, precisamos lutar contra o crime organizado, contra criminosos e narcotraficantes. Mas, ao mesmo tempo, precisamos garantir a proteção das crianças. E principalmente os mais vulneráveis, os mais esquecidos e aqueles que vivem na favela devido a sua etnia, sua cor, seus modos, seu comportamento. Eles não se sentem protegidos e não estão devidamente protegidos.

Qual foi a sua impressão sobre os relatos das mães de vítimas da violência?

Primeiro, é o fato de perder um filho e esperar dez anos para ter uma resposta da Justiça. Acho que isso é o pior, porque eles foram mortos por nada. Além disso, eles foram rotulados como criminosos para justificar seus assassinatos. E, por fim, esses familiares têm que lutar muito para provar que foi um homicídio e conseguir a verdade dos fatos. Uma demora de dez anos para ter Justiça é muito tempo. É loucura. Mas, ao mesmo tempo, meu Deus, eu admiro a coragem e o compromisso delas. Acho que investigação e reparação, com a supervisão da Promotoria, são muito importantes, porque o que estamos vendo é uma falta de confiança na polícia e nas instituições. E você não pode construir paz e desenvolvimento sustentável sem confiar nas instituições.

Qual o impacto da falta de segurança das crianças que são baleadas, por vezes, nas próprias escolas ou a caminho delas, no Rio?

Quando você tem disparidades sociais, quando você não está investindo em escolas seguras, inclusivas e de qualidade — porque é um investimento e não caridade — , você tem um problema. E, quando falo sobre segurança nas escolas, digo segurança no caminho, dentro e ao redor. As crianças estão pagando muito caro. Ao redor da escola, você tem facções armadas, grupos criminosos, tem intervenção da polícia, que mesmo para proteger, às vezes não entendemos muito bem quem eles estão protegendo. Como você atira sabendo que está ao redor de uma escola?

Mas o que deve ser feito?

Não dá para construir segurança pública se as pessoas não se sentem seguras. E eu falo de todas as pessoas, sem discriminação. Sei que graças aos defensores públicos, à sociedade civil e ao trabalho dessas mulheres, o Supremo Tribunal Federal (STF) determinou algumas ordens executivas. Uma delas diz respeito à proteção e à intervenção da polícia dentro e ao redor da escola (ADPF das Favelas). Isso é muito importante. Outro problema é a investigação. Há também uma ordem para impedir que crianças sejam presas porque são negras, porque não estão se comportando muito bem, por exemplo, numa praia. Mas eles não cometeram crimes. Essas medidas são um começo, mas precisamos acelerar o caminho para garantir que todos sejam tratados igualmente.

Como a ONU está colaborando com o governo brasileiro para combater a violência infantil no Rio?

A Unicef, que é a agência relacionada à proteção infantil, está trabalhando muito com as crianças que encontramos aqui. O Rio tem algumas especificidades em relação à violência. Aqui você tem a violência armada, violência doméstica, violência sexual, física, emocional, punições corporais, gravidez precoce. Lidar com isso e prevenir essas situações significa abordar os fatores que impulsionam a violência, que têm a ver com justiça social e acesso à educação inclusiva e de qualidade, à proteção, à saúde mental e reprodutiva e a uma Justiça que seja amigável às crianças e às questões de gênero. A Unicef apoia o governo brasileiro e os atores envolvidos para pensar como protegemos as crianças que são vítimas e testemunhas de violência e, ao mesmo tempo, nossas crianças que estão em conflito com a lei e, em muitos casos, são vítimas e infratores.

E como fazer isso?

A privação de liberdade deve ser evitada e usada como último recurso. A prioridade é dar educação social, psicossocial, emocional e promover a recuperação dessas crianças. Segurança também é sobre melhorar o ambiente onde elas crescem e suas condições de vida e acesso a serviços. Há um movimento atual com a Procuradoria, a polícia, os defensores públicos, os conselheiros tutelares e a rede de ativistas locais para garantir que o caminho para a escola, o interior e o redor dela sejam devidamente protegidos para que as crianças não sejam alvo dessa luta contra o crime. Não é uma escolha, porque o impacto da violência é de longo prazo, pode ser intergeracional e impacta o crescimento econômico e a produtividade do país.

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