Hermenêutica Negra Feminista: um ensaio de interpretação de Cântico dos Cânticos 1.5-6

A partir da instrumentalidade da Hermenêutica Negra Feminista, pretende-se interpretar Cântico dos Cânticos, capítulo 1, versículos 5-6. Nesse exercício hermenêutico que privilegia a experiência da mulher negra, marcada pelo sexismo, racismo e classismo, propõe-se resgatar o texto de sua unilateral interpretação ocidental.

Black Feminist Hermeneutics: an essay of the interpretation of the Song of Songs 1.5-6

por Cleusa Caldeira no Scielo

Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia


RESUMO

A partir da instrumentalidade da Hermenêutica Negra Feminista, pretende-se interpretar Cântico dos Cânticos, capítulo 1, versículos 5-6. Nesse exercício hermenêutico que privilegia a experiência da mulher negra, marcada pelo sexismo, racismo e classismo, propõe-se resgatar o texto de sua unilateral interpretação ocidental. Evidencia-se que a tradução desse texto bíblico tem sido condicionada pela lógica do etnocentrismo, e as interpretações são pautadas pelo eurocentrismo, o que acaba inviabilizando a identificação da influência afro-asiática na formação e autocompreensão dos israelitas. 

Palavras-chave: mulher negra; etnocentrismo; eurocentrismo; hermenêutica negra; identidade.


ABSTRACT

It is aimed to interpret the Song of Solomon 1.5-6 on the basis of the Black Feminist Hermenutics. In this interpretation exercice , that favour the black woman experience marked by sexism, racism and classism, it is intended to rescue the text from its western unilateral interpretation. It is shown through translation of this text  that it has been conditioned by the ethnocentrism and the interpretations are based on the Eurocentrism, making the Afro-Asiatic influence unfeasible in the Israelites formation and understanding. 

Key Words: Black Woman; Ethnocentrism; Eurocentrism; Black Hermeneutics; Identity.


A interpretação androcêntrica da Bíblia foi confrontada pela primeira vez por Elizabeth Cady Stadon com o lançamento da The Woman’s Bible (A Bíblia da Mulher), em 1895 e 1898. Essa publicação era uma edição bíblica “não-acadêmica, embora intelectual e sociologicamente perspicaz”,1foi um projeto rechaçado pelos círculos de teologia e considerado um erro político, até mesmo pela Associação Americana de Sufrágio da Mulher.2

Quase 100 anos depois do lançamento da The Woman’s Bible, emergiu, concomitantemente às diversas teologias da libertação, a Texologia Feminista,3 hoje reconhecida nos círculos acadêmicos. Um dos critérios utilizados pelo feminismo é a hermenêutica da suspeita, que contesta a história escrita por homens, vencedores e poderosos, sendo um dos seus pontos de partida o reconhecimento de que, ao longo da história, a Bíblia tem sido instrumentalizada para manter as mulheres na sujeição e impedir sua emancipação. Uma evidência disso é que a interpretação masculina da Bíblia assumiu praticamente um significado canônico.4 Razão por que feministas pós-bíblicas5 argumentaram que a religião bíblica (e a teologia) é sexista em seu cerne. Elas rechaçam a Bíblia porque não acreditam que mulheres possam realizar interpretações que não venham a legitimar o sexismo prevalecente na religião bíblica. Mulheres biblistas,6 no entanto, acreditam que é possível, a partir das tradições feministas que estão preservadas no corpus bíblico, superar o patriarcado.7 Isso acontece quando as mulheres se apropriam do texto bíblico como uma porção de sua própria história e o interpretam a partir de uma perspectiva feminista. 

Evidente que a Bíblia é produto de uma cultura patriarcal e androcêntrica e que as interpretações dos textos bíblicos que são realizadas pela teologia oficial estão carregadas de pressupostos racializados8 e etnocêntricos. Por isso, o desafio da Hermenêutica Negra Feminista é desmascarar as interpretações tendenciosas e reinterpretar o relato bíblico na perspectiva do povo negro, nesse caso, da mulher negra. 

 

1 O Cântico dos Cânticos

A Bíblia é formada por 66 livros,9 distribuídos entre o Antigo e o Novo Testamento. O Cântico dos Cânticos é um livro que pertence aos escritos do primeiro Testamento. Esse livro, que, na verdade, é uma coletânea de pequenos poemas eróticos, constitui evidência de que havia, no antigo Israel, uma cultura feminina de poesias baseada em uma tradição oral.10

Na tradição judaica, como na cristã, sua autoria foi sempre atribuída ao monarca Salomão. Nas últimas décadas, no entanto, com o avanço da pesquisa bíblica, a autoria salomônica começou a ser questionada e, inclusive, refutada. Segundo Pablo Andiñach, a pertença feminina do Cântico dos Cânticos não necessitaria de apologia, caso “não fosse nossa mentalidade estreita que acha estranho uma mulher poder ser autora de um livro da Bíblia.”11

No imaginário popular, a leitura do Cântico dos Cânticos está consagrada à alegoria. Essa leitura é condicionada pelo dualismo antropológico, que contrapõe o corpo e o espírito, a terra e o céu, a mulher e o homem, o erótico e o sagrado, etc. Esse tipo de leitura espiritualiza os poemas e interpreta a amada como sendo a Igreja e o amado como Cristo. Essa leitura promove um imaginário masculino e inviabiliza o protagonismo e o resgate do sentido feminino dos poemas eróticos. Não apenas isso, mas impõe um pressuposto hierárquico da masculinidade divina dominante e de uma feminilidade submissa. 

Em oposição a essa corrente, temos a Leitura Literal, ou Natural, que entende que há no Cântico dos Cânticos poemas de amor humano, portanto, permite o resgate do erotismo dos poemas. 

Este artigo aborda o Cântico dos Cânticos sob uma perspectiva antropológica, que é um desdobramento da Leitura Natural. Nessa perspectiva, procura-se recuperar o erotismo nos poemas, compreendendo que uma das dificuldades em assumir o conteúdo erótico do Cântico dos Cânticos tem a ver com a redução e as investidas no conceito. O erotismo está além da expressão sexual; ele diz respeito a tudo quanto se move em toda a criação, a todos os tipos de relacionamentos. 

Onde o erótico é negado, estabelecem-se relações de domínio, controle, exclusão e opressão.12 Desse modo, podemos compreender o movimento que se deu no período do pós-exílio (538 a.C.), por meio do projeto de reconstrução nacional idealizado pela elite sacerdotal. Nesse período, em que postulamos o surgimento do Cântico dos Cânticos enquanto livro sistematicamente organizado, houve um movimento de dessacralização do erotismo, com o objetivo de isolar Iahweh13 das divindades femininas que eram cultuadas em Judá.14 Nesse movimento de dessacralização, Iahweh deveria ser estabelecido como o único Deus, senhor, masculino, que respaldaria o ideal de sociedade patriarcal idealizada pela elite sacerdotal e seu aparato sacerdotal exclusivamente masculino. 

Por isso, resgatar o erotismo no Cântico dos Cânticos é, também, valorizar as diferenças, porque o “outro” sempre será um interlocutor correspondente; ou seja, no erotismo não existem jerarquias. O erótico é um diálogo com o próprio corpo, assim como com todos os demais corpos, sem fazer distinções ou classificações. “A construção do meu corpo, de minha pessoa revela minha construção erótica, revela algo de minha liberdade interior, de minha busca de comunhão com os outros”.15

Este ensaio de interpretação é uma tentativa de contribuir para o resgate da negritude16 no mundo bíblico, concomitantemente assumindo a pluralidade de culturas implícitas na experiência do antigo Israel, e, assim, ajudar na reconstrução da identidade afro-feminista. Fazemos essa afirmação porque entendemos ser a identidade afro-feminista algo em construção. A sociedade escravocrata tentou destruir a identidade do povo negro por meio de ideologias racistas, sexistas e classistas e usava os textos bíblicos para legitimar tais ideologias. 

Dentro do Cântico dos Cânticos, destacamos o poema da mulher negra, registrado em Ct 1.5-6. Esse é, sem dúvida, um dos raros textos bíblicos que faz referência explícita a uma mulher negra,17apesar de toda problemática que essa afirmação traz em si mesma, a qual é o objeto de nosso artigo. Acredita-se, assim, que Ct 1. 5-6 pode contribuir para retirar a mulher negra da invisibilidade que a teologia eurocêntrica a submeteu.

A Hermenêutica Negra Feminista ensaiada neste artigo procurará resgatar a negritude nesse texto bíblico a partir de três pontos principais: desconstrução de interpretações racistas, protagonismo da mulher negra e aspectos geográficos, genealógicos que a vincule às culturas afro-asiáticas. 

leia também: Pastora Cleusa Caldeira – Conhecimento e Religião hermenêutica negra feminista

2 Nasce uma nova hermenêutica 

A sociedade escravocrata, na qual o Brasil se formou, colocou as mulheres negras na posição de subalternas. Essa relação foi construída com a legitimação da Bíblia, a partir de traduções e interpretações de cunho eurocêntrico,18sobretudo no período colonial. É importante ressaltar que, em momento algum, a Bíblia foi neutra diante da escravidão, antes serviu como “ferro em brasa” e “algemas” que aprisionavam negras e negros no “doce inferno” do engenho de açúcar.19

Nesse sentido, teólogas negras e teólogos negros não têm medo de dizer que a Bíblia, para a comunidade negra, é uma “fonte amarga” porque foi usada não apenas para legitimar a escravidão, mas também para amaldiçoar o povo negro, através de sua interpretação repleta de etnocentrismo.20 À mulher negra foi relegado o papel de feiticeira, escrava, sensual, pecadora, libertina, o que contribuiu para a construção de um imaginário negativo em relação ao seu corpo: estereotipado e considerado feio. 

Apesar de toda experiência de dor, a comunidade negra hoje se aproxima da Bíblia porque acredita que ela pode ser também uma fonte de alegria e prazer, quando negras e negros tornam-se sujeitos na leitura bíblica. É uma reivindicação legítima o enegrecimento da teologia e das teólogas e dos teólogos, porque a reflexão teológica deve partir da mulher negra e do homem negro, uma vez que uma teologia vinda de fora é susceptível de ser colonizadora. Essa reivindicação na América Latina tem suas raízes, principalmente, em dois modos de fazer teologia: a Teologia Negra e a Teologia da Libertação.

A Teologia Negra nasceu entre 1966 e 1969, nos Estados Unidos, das lutas do povo negro, tendo como pano de fundo a experiência histórica da escravidão e segregação racial. Essa Teologia não é um dom do evangelho cristão partilhado aos escravos. Antes, “é uma apropriação que os escravos negros fizeram do evangelho que lhes fora dado pelos seus opressores”.21

Inteiramente comprometida com a vida, a Teologia Negra nasce da experiência concreta do povo negro discriminado e, mais tarde, segregado. Diante da Teologia branca, eurocêntrica, que legitimava o sistema de escravidão americano, a Teologia Negra emergiu para fazer cultivar a esperança de sobrevivência do povo negro.

Em outras palavras, a Teologia Negra “é uma teologia de libertação”.22 Ela é a afirmação da humanidade negra e emancipação do racismo branco e, consequentemente, geradora da verdadeira libertação, que acontece tanto para o povo negro quanto para o povo branco. Mas a Teologia Negra não contemplava a diversidade de contextos existentes no mundo, portanto, não enfocava outras pessoas em situação de opressão e marginalização. Era preciso uma reformulação do pensamento teológico desenvolvido nos Estados Unidos. 

A própria questão de gênero não foi considerada pela Teologia Negra, já que, em seu início, havia um silêncio em relação à experiência das mulheres negras, mesmo elas constituindo metade da população negra e 75% da Igreja Negra. Falava-se da experiência de homens negros, isenta da contribuição por parte das mulheres negras. Esse silêncio foi desafiado com o aparecimento de teólogas negras, tomadas pela consciência feminista e negra.

James Cone23 declara que esse silêncio é devido ao machismo dos teólogos negros que achavam ser o feminismo ideia de mulher branca de classe média e, ao mesmo tempo, afirmavam “controversamente que a mulher negra já estava liberta”. Mas, a partir de 1977, inicia-se a correlação entre racismo, sexismo e classismo, dando origem a womanist theology, a teologia feminista na perspectiva negra.24

A Teologia da Libertação, por sua vez, emergiu na América Latina, a partir de Medellin (1968-1975), e fazia, explicitamente, a opção preferencial pelos pobres, objetivando sua libertação integral, ou seja, não apenas se busca a libertação do pecado individual, mas a libertação do pecado social que escraviza e marginaliza uma grande parcela do continente.25

Contudo, a crítica do povo negro à Teologia da Libertação é que esta “supere as categorias genéricas político-sociais e dê um passo adiante para estabelecer um compromisso com rostos concretos que vivem em situação de opressão cultural e étnica”.26 Portanto, fazia-se necessário assumir que a grande raiz da pobreza e marginalização era a questão étnica.

Assim, a Teologia da Libertação e a Teologia Negra, e suas hermenêuticas, impulsionaram o aparecimento de uma Teologia Afro-Americana, ou melhor, as suas limitações possibilitaram o surgimento dessa nova teologia. É a partir da constatação de que a discriminação racial é o fator determinante para a situação do povo oprimido que emerge a hermenêutica negra. 

A Teologia Afro-Americana procede da realidade do povo negro na América Latina, de sua história, cultura, família e dos seus costumes. Essa elaboração teológica só é possível quando esse povo negro redescobre o valor que tem sua cosmovisão e, simultaneamente, cada pessoa negra toma consciência de sua negritude e da importância de seu papel na comunidade.27

Dessa Teologia deriva a Hermenêutica Negra Feminista, em que a “mulher negra passa a ter visibilidade e se assume como intérprete e artífice da história”.28 A preocupação primária da Hermenêutica Negra Feminista é pela situação concreta do racismo, sexismo, classismo, subjacente à experiência das mulheres negras na América Latina. Essa hermenêutica compreende que é necessário desmascarar a pretensa neutralidade histórica, bem como resgatar a mulher negra da condição a que foi submetida pelo imaginário sociorreligioso, formado por uma interpretação branca androcêntrica. Nesse imaginário, a mulher negra está sempre relacionada à fraqueza da carne, à sensualidade, à tentação, ao pecado e à fealdade. 

 

3 Conhecendo a trama do texto

Como foi dito, já é possível postular a autoria feminina dos poemas do Cântico dos Cânticos. Entre esses poemas que corroboram a tese da autoria feminina, está o poema da mulher negra em Ct 1.5-6. O texto que se segue foi traduzido da Bíblia Hebraica Stuttgartensia (BHS):29

Negra eu sou e (sou) bela 
Filhas de Jerusalém
Como as tendas de Quedar
Como as tendas de Salma
Não (!) vejais a que eu sou negra
Que me avistou o sol
Os filhos da minha mãe ficaram raivosos comigo
Puseram-me a guardar os vinhedos
A vinha que era minha não guardei

Em geral esse texto se encontra em bom estado,30 o que facilita a sua tradução. Contudo, as traduções e interpretações, como será constatado a seguir, estão carregadas de ideologias que refletem e viabilizam uma sociedade racista e, consequentemente, inviabilizam a presença negra na Bíblia. 

3.1 Evidências do etnocentrismo

A primeira questão em torno de Ct 1.5-6 é a propensão de ratificar a ideologia que opõe, como algo “natural”, negritude e beleza. Essa tendência tem como objetivo estabelecer a estratificação social e, consequentemente, a legitimação da escravidão de povos negros. Em outras palavras, esse é o “fruto amargo”, que ainda se prova, dos regimes imperialistas e colonialistas.

Há a inclinação em comprovar a impossibilidade de se traduzir a partícula “vav” no sentido aditivo (e), no versículo 5. Como veremos no quadro abaixo, as versões bíblicas mais tradicionais optam por traduzir tal partícula como adversativa (mas, porém). Dessa forma, o texto final fica: “Preta sou, mas bela”, o que contrapõe negritude e beleza, ou seja, apesar de preta é bela. Essa é, com efeito, leitura etnocêntrica, pois coloca o branco como categoria de beleza. 

Segundo Alonso Schökel, para traduzir o “vav” para o português, muitas vezes, basta a forma do copulativo simples (e), o que raramente exigirá ou recomendará alguma diferenciação.31 Portanto, a tradução aqui proposta, “Negra eu sou e (sou) bela”, é uma forma que permite conjugar, naturalmente, negritude e beleza.

Outra questão importante na tradução de Ct 1.5-6 é a forma como são traduzidos shahorah e sheharehoret(negra), que, inquestionavelmente, a teologia eurocêntrica traduz como “preta” ou “morena”, evitando traduzir como “negra”. Optar por “preta” ou por “negra” alteraria o sentido do texto para uma Hermenêutica Negra Feminista?

É importante verificar qual é o significado de cada termo nos dicionários da língua portuguesa. À primeira vista, pode-se dizer que a palavra negra/negro e preta/preto são termos correspondentes, ambos se aplicam às pessoas de pele preta.32 Contudo, no Brasil, “preto/preta” é mais um conceito cromático, enquanto “negro/negra” é um conceito étnico, pois é com os termos negra/negro que se apresenta a designação de etnia.33 A palavra “negra” está intrinsecamente ligada à condição social a que a mulher negra foi submetida por séculos. Negra é sinônimo de “escrava” e de “mulher que vive em cativeiro”.34 Isso demonstra que o termo está carregado de ideologias etnocentristas. 

Nesta pesquisa optou-se por traduzir shahorah e sheharehoret por “negra”, porque ser negra é muito mais do que ter a pele preta. É assumir-se como sujeito de seu próprio destino; é ter consciência da história de negação a que foi submetido o povo negro; é engajar-se politicamente na busca de transformação social; é gostar do próprio corpo e de sua própria história.

No Quadro 1, explicita-se como algumas das mais conhecidas versões bíblicas em português traduzem o “vav” e, também, as palavras shahorah e sheharehoret

A Bíblia de Genebra traduz a partícula vav por “e”, porém opta pela terminologia “morena” e não “negra” em Ct 1.5-6. Não apenas isso, também usa o verbo “estar” antes dos adjetivos, em vez do verbo “ser”, o que elimina a possibilidade de entender o “estar morena” como uma questão étnica. Consequentemente, o “estar morena” é resultado da situação cultural e social a que foi submetida pelos “irmãos”, pela crescente “discriminação entre grupos sociais de diferentes níveis e procedência social”.35

Como se pode constatar, as versões bíblicas traduzem shehorah por “preta” como uma indicação cromática, e o “vav” como conjunção adversativa (mas). Nenhuma dessas versões, anteriormente analisadas, opta pela tradução de shahorah e sheharehoret por “negra” em Ct 1.5-6. 

Pode-se considerar isso perfeitamente natural. Contudo, quando se passa a comparar as traduções de Ct 1.5-6 com Ct 5.10-11,36 percebe-se que pode haver certa dose de etnocentrismo na tradução de ambos os textos. 

Nenhuma das versões bíblicas comparadas acima opta pela copulativa simples quando traduz o “vav” de Ct 1.5-6, ou seja, ele é sempre traduzido como adversativa (Sou preta, mas bela). Mas as mesmas versões não hesitam em traduzir o “vav” de Ct 5.10-11 como copulativa simples (e) (Meu amado é branco e rosado). Isso porque o que está em jogo é comprovar que o amado tem a pele branca, ou seja, como argumenta Luis Stadelmann, “a cor da aparência dos príncipes”, pois o texto estaria descrevendo o aspecto dos jovens da nobreza de Judá.37

Esse tipo de tradução que transforma o amado, de “incandescente” e “vermelho”, “pardo”, “marrom”, “moreno”,38que são as traduções possíveis do texto em Hebraico, em “branco como leite” e “alvo como a neve”,39 não consegue explicar como esse “homem branco” pode ter o cabelo shehorot (negro) como os de Oreb”. Por isso, traduz os cabelos do amado “pretos como o corvo” no sentido cromático do termo, o que leva o leitor a imaginar alguém com os cabelos pretos, lisos e brilhantes como o são os cabelos de pessoas indígenas. 

Contudo, segundo o relato bíblico, Oreb é uma indicação tanto de lugar geográfico quanto de nome próprio (Jz 7.25-26). Como nome próprio, Oreb é a designação de um príncipe cananeu, ou seja, provavelmente um afro-asiático. Mas qual será a verdadeira intenção desses intérpretes ao branquear o amado de Ct 5.10-11 e, ao mesmo tempo, ocultar uma possível negritude e beleza de Ct 1.5-6? 

Suspeita-se que o objetivo de tais traduções, conscientes ou não, é camuflar o intercâmbio cultural, econômico, étnico e religioso dos hebreus com povos afro-asiáticos. Poderia ser, então, o poema de Ct 1.5-6 uma evidência textual da multiculturalidade subjacente à experiência do antigo Israel? 

3.2 A nova cor do texto 

Para Peter Nash, não existem dados que possam sustentar a proposição de que os hebreus tinham a pele clara. Segundo Nash,40

[…] é um elemento em alguns textos e um pressuposto cultural presente em quase todas as narrativas bíblicas até o fim do exílio (=/- 538 a.C.) e a entrada dos persas na história sagrada. Os persas formam o primeiro povo não afro-asiático que conseguiu dominar a Terra Santa.

Fica evidente o etnocentrismo generalizado da cultura ocidental, que sequer questiona a participação do homem “branco” como sujeito e agente histórico no antigo Israel. Isso porque “a masculinidade e a superioridade são a norma, enquanto a feminilidade e a negritude constituem um desvio dessa norma”.41 A investigação sobre os povos afro-asiáticos e as mulheres, sua participação na comunidade do antigo Israel, é determinada por interesses políticos que criam uma identidade e continuidade dentro dos moldes da teologia tradicional.

Por isso, busca-se o enegrecimento da teologia, bem como das pessoas que fazem teologia, para, assim, desmascarar o caráter ideológico do etnocentrismo. Busca-se não apenas isso, mas também explicitar a participação de outras culturas, em especial as de origem afro-asiáticas, na formação e autocompreensão do antigo Israel como povo. 

É evidente que a voz a ser ouvida em Ct 1.5-6 é voz de mulher, que se considera negra, dirigida a um grupo de mulheres, “as filhas de Jerusalém”. O grande desafio está em deixar a mulher negra falar. 

Ivo Storniolo42 classifica esse poema como “pedido de desculpas” por parte da amada, devido à cor de sua pele, sendo esta um possível impedimento para o amor. Maria Cornelia Norbeta Deckers43 acredita que, em Ct 1.5-6, estão expressos sentimentos disfóricos de “vergonha”. 

Porém, esse pequeno poema, longe de ser um “pedido de desculpas” ou expressar algum sentimento de “vergonha”, é uma autoapresentação seguida de denúncia. Na verdade, é uma autoapresentação44 que faz do próprio corpo veículo de denúncia. 

Para Jesús Luzarraga,45 esse poema é uma autoafirmação, ou seja, um testemunho da sua própria aceitação, sem nenhum complexo. Evidente que é a voz de uma mulher que se faz ouvir como em uma canção que, em sua primeira nota, dá o tom para o restante das cantoras e cantores que a sucedem. É o despertar de uma consciência, como o despertar de um novo dia, ou, como na linguagem do Cântico dos Cânticos, é o anúncio da chegada da primavera (Ct 2.11). 

A autoapresentação não é exclusividade desse poema, é, na verdade, a primeira das três autoapresentações, que ocorrem em todo o Cântico dos Cânticos. As outras duas estão registradas em Ct 2.1, “Eu sou lírio de Sharon”, e em Ct 8.10, “Eu sou muralha”. Humberto Eugenio Maiztegui Gonçalves diz que:46

[…] nestes textos, a intencionalidade das mulheres parece ser mais a de evidenciar que elas possuem poder (1,5; 8,10a). Este é um poder próprio e suficiente para se opor aos que as impedem de realizar os seus desejos (1,6 e 8,10b) e capazes de alcançar o que buscam em toda sua plenitude (o prazer e a paz). […] Nestas apresentações, elas vão além do que hoje se chamaria ‘auto-estima’, pois a mulher não só se vê a si mesma como bela e pujante, mas sente-se poderosa. É este poder que o Cântico dos Cânticos transpira através da voz das mulheres que, para alguns intérpretes, pode soar ameaçador. 

Dessa forma, temos em Ct 1.5-6 o empoderamento da mulher negra. Esse é o poder bom, o poder mútuo;  poder que viabiliza outros a participarem no poder da vida. Um poder que edifica, desperta as potencialidades.47

Esse empoderamento pode ser visto através da palavra “ani”, ou seja, “eu”, presente nos versículos 5 e 6. Esse termo indica o processo de individualização que constitui uma marca peculiar do Cântico dos Cânticos. Nesse livro, encontram-se todas as possibilidades na língua hebraica para a palavra “eu”, em uma proporção disparate, em comparação aos demais livros bíblicos.48

Assim, se for levar em consideração o período no qual o Cântico dos Cânticos foi editado, o pós-exílio, a autoapresentação das mulheres nos poemas, dizendo “eu” sou, toma um significado todo especial, principalmente porque, no pós-exílio (538 a.C.), a liderança nacional dizia que a mulher não era sujeito social. O seu valor estava somente no seu corpo, como corpo reprodutor e tributável. 

 

4 Polissemia de Cântico dos Cânticos 1.5-6

Até aqui se pôde perceber que o etnocentrismo tem condicionado a tradução desse texto, mas é legítimo que mulheres negras e homens negros apropriem-se do texto e ofereçam uma tradução e interpretação distinta da teologia tradicional. Razão pela qual optamos, nesta pesquisa, pela Hermenêutica Negra Feminista. 

Propomos, assim, explicitar como o texto tem sido monossemicamente interpretado a partir da ótica ocidental, marcadamente racista, machista e classista. Em seguida, pretendemos mapear as informações fornecidas no próprio texto, com o objetivo de estabelecer um novo sentido, reconhecendo a sua polissemia. Para isso, faremos uso da análise sincrônica, ou seja, a narratologia. Com base nesse método, é possível a interação da leitora e do leitor com o texto, o que também implica analisá-lo em três níveis: a) Quem fala? Ou seja, quem está contando a história? b) Quem vê? Ou melhor, quais imagens da realidade (imaginário) são apresentadas? c) Quem age? Quais são as relações existentes entre as personagens e os eventos relatados? 

4. 1 Negritude e beleza: o centro da questão(?)

Uma das raízes da ideologia racista, que se disseminou por todo o Ocidente, inviabilizando a conjugação de negritude e beleza, está na exegese patrística49 de cunho alegórico. Muitos foram os Pais da Igreja que realizaram uma leitura alegórica do Ct 1.5-6. Nessas leituras, a negritude e beleza são sempre contrapostas. Assim, para Ambrosio (340-397), ela é “negra pela fragilidade humana, mas bela pelo sacramento da fé”, ou pode ser, como afirma Cassiodoro (485-551), “negra no corpo, mas bela no mérito”. Também, como enfatizou Gregório de Nissa (330-395), “negra por causa do pecado, mas bela por meio do amor”. A questão que está por trás dessas afirmações é: “Como pode qualquer coisa negra ser bela, ou qualquer coisa bela ser negra?” Pergunta essa formulada por Gregório de Elvira, (300/350-392).50 Mas foi Orígenes (185-254 d.C.), por meio do seu comentário ao Cântico dos Cânticos, um dos pioneiros na leitura alegórica, o qual mais influenciou o pensamento Ocidental sobre a contraposição de negritude e beleza. Veja como Orígenes51 disseminou seu racismo. 

Negra pela ignomínia da raça, mas formosa pela penitência e pela fé […] Negra pelo pecado, mas formosa pela penitência e fé […] Sou negra, mas formosa: pois não fico até o fim na negridão, mas subo branqueada […] Ela que é negra não é assim pela natureza, nem criada assim pelo Criador, mas sofreu essa situação acidentalmente […] Assim é a situação dessa gente etíope, que tem uma natural negridão proveniente da sucessão carnal, pois nessas paragens o sol arde com mais fervor e os corpos já queimados permanecem do mesmo jeito pela sucessão do vício […] Do contrário com a negridão da alma esta não adquire pelo nascimento mas pela negligência. A alma se tornou negra porque desceu. Mas quando começa a subir, ela se torna branca e cândida: rejeitando a negridão ela começa a irradiar a verdadeira luz.

A mulher negra, nessa perspectiva, não pode ser bonita devido à sua cor, e sua beleza só é possível por meio da penitência e da fé. A negritude está ligada à ideia de pecado. Desse modo, Deus não poderia ter criado essa ‘raça’; sua cor é acidental pelo pecado. 

A interpretação patrística de Ct 1.5-6 tem servido para condenar o erotismo, a sensualidade e a beleza do corpo de mulher negra, ou seja, para justificação de ideologias sexistas, classistas e racistas.

Uma das dificuldades de interpretação desse poema consiste em saber se a autoapresentação que define a mulher como negra por duas vezes, Ct 1.5-6, é uma expressão única ou pode-se considerá-la como duas apresentações independentes. A polêmica é se ela é uma mulher negra (Ct 1.5) ou se sua cor é devido ao sol que a queimou (Ct 1.6). Em 1.5, ser negra parece estar ligado à beleza e, em 1.6, parece ser uma marca da opressão.52

 Gianfranco Ravasi53 traduz Ct 1.5 assim: “tenho a pele escura, mas sou fascinante”. O ‘vav’ hebraico, que separa os vocábulos “escura” e “fascinante”, é interpretado como conjunção adversativa ‘mas’. Assim, Ct 1.6 é usado como chave para a interpretação de Ct 1.5, pois, em Ct 1.6, a razão de ser negra é “o sol que me bronzeou”, como uma desculpa pela cor que, nesse caso, não é considerada atributo de beleza. 

Maiztegui Gonçalves54 adverte que, ao se usar Ct 1.6 como chave interpretativa para Ct 1.5, pode-se estar incorrendo em uma interpretação tendenciosa, especialmente quando feita por alguém que não é negra ou negro, pois se elimina a possibilidade de que, em Ct 1.5, a negritude seja um sinal de beleza.

Já Francis Landy55 explicita suas ideologias racistas e classistas afirmando:

[…] a pele branca é delicada, intocada, e facilmente se mistura com o simbolismo de brancura como pureza. A garota intocada, delicada é virginal, cuidadosamente criada dentro da sociedade para aguardar seu esposo. A garota negra – seja a síria bronzeada de Teócritos ou a empregada castanha, de Menalcas ou a virgem de Amyntas – está disponível, e conseqüentemente menos idealizada e mais sedutora atraente […] sua cor escura é um indicador de classe, como um sotaque. 

Seguindo essa linha de pensamento, não é difícil encontrar nos comentários bíblicos a explicação de que, “no mundo Mediterrâneo, o cânon estético da beleza era a tez clara”.56 A mulher negra está relacionada não somente à concepção de pecado, mas também à de “libertinagem e permissão sexual”.57 Ainda com esse tipo de raciocínio, em que o Ct 1.6 é usado como chave hermenêutica para compreender o Ct 1.5, Andiñach58declara: 

[…] na antigüidade a cor branca de pele era considerada como um traço de nobreza e alto nível social. O fato estava vinculado ao seguinte: os escravos e o povo em geral tinham que trabalhar diariamente ao ar livre, enquanto os ricos e cortesãos se protegiam do sol morando em suas casas. As filhas de Jerusalém tinham um semblante claro porque não trabalhavam e sua vida citadina permitia-lhes cuidar de sua pele.

Leituras como essas promovem o imaginário étnico totalmente branco, negando a participação de povos afro-asiáticos na história do povo de Deus. Negras e negros, quando aparecem nos textos bíblicos, são interpretados na condição de subalternos e escravos. 

Porém, Victor Morla59 relata que, “no Oriente, o normal era e segue sendo ter a pele morena”. Para ele, não existe na literatura do Próximo Oriente Antigo nenhum documento que justifique esse raciocínio estético, no qual a pele branca seja considerada o ideal de beleza feminina. É possível, então, que o poema em Ct 1.5-6 seja uma evidência de que as pessoas do mundo antigo, do qual se originou o Antigo Testamento, não fossem tão brancas como se acreditou e se disseminou por séculos pelas ideologias racistas. 

Por que é tão difícil aceitar que a mulher em Ct 1.5-6 tem mesmo a pele preta, e não que sua pele ficou preta devido ao sol que a queimou? Ademais, acreditar que o sol em excesso só prejudica a pele branca pode constituir uma evidência de preconceito contra a mulher negra.60

Supõe-se que a dificuldade em aceitar que essa mulher é preta de natureza, ou mesmo, que ela se autocompreende como uma mulher negra, e não que sua pela ficou preta, tem a ver com a mesma questão levantada pelos Pais da Igreja: “Como pode qualquer coisa negra ser bela, ou qualquer coisa bela ser negra?”.61Perguntas como essa estão carregadas de etnocentrismo. A saída encontrada pelos Pais da Igreja para essa questão foi interpretar Ct 1.5-6 alegoricamente, ou seja, negar toda alteridade da mulher negra.

Para os intérpretes contemporâneos, a saída encontrada parece ter sido a de usar o Ct 1.6 como chave interpretativa do Ct 1.5 e advogar que há apenas um único sentido para os poemas em Ct 1.5-6, a saber, que a opressão sofrida pelos irmãos da jovem sob o ardor do sol “prejudicou” sua pele e, consequentemente, sua beleza.  

Não há evidência textual capaz de comprovar que essa mulher, que se autoapresenta como negra e bela, seja etnicamente negra.62 Por outro lado, não se pode negar que essa mulher se autorreconhece como uma mulher não branca, e sim negra. Não apenas isso, também é possível perceber, por meio de sua autoapresentação, que negritude e beleza são termos perfeitamente conjugáveis. 

Diante do exposto, acreditamos que o levantamento dessa problemática, negritude versus beleza, não ajuda a construir uma identidade afro-feminista a partir do Ct 1.5-6, pois se trata de uma maneira de camuflar o verdadeiro papel dessa mulher no texto. Essa perspectiva torna necessário o estabelecimento de outro centro que permita a visibilidade da mulher negra, bem como seu protagonismo na narrativa bíblica. 

4.2 A mulher negra no centro

Fica evidente a tentativa da teologia eurocêntrica de neutralizar, remover, a positividade do protagonismo negro do texto bíblico. Em textos que tratam explicitamente de pessoas de origem afro-asiáticas, negra ou negro, enaltecendo sua beleza, poder, riqueza ou sabedoria, faz-se necessário comprovar, de todas as formas possíveis, que o texto não está apresentando uma “figura de linguagem”, uma “mensagem cifrada” ou “proverbial”.

Mena López63 chama a atenção para o fato de que não basta listar a presença negra, “mas colocar nossa presença no centro”. Portanto é imprescindível estabelecer outro centro capaz de privilegiar a cultura e religião dos afro-asiáticos, em especial, ampliando a cosmovisão que leve em consideração as relações multiculturais, que faziam parte da experiência sociorreligiosa no antigo Israel.

Em Ct 1.5-6, a manipulação na tradução da partícula “vav” e de shahorah e sheharehoret, acrescentada à omissão da variação Salma, acaba ocultando a identidade dessa mulher e, assim, inviabilizando uma aproximação com a maneira como os personagens bíblicos se autocompreendiam. Por isso, cabe retomar essas informações e perguntar: quem é essa mulher? Segundo o próprio texto, a identidade dela está vinculada às tendas de Quedar e de Salma.

Os pesquisadores não têm problema em assumir que Quedar e Salma são duas tribos árabes, mas o sentido delas no poema é pouco discutido. Aparentemente, pouco se sabe de Salma64 e Quedar.65 Há um grande silêncio em relação à origem dessas tribos e o que elas têm a ver com a história do antigo Israel. Quebrar esse silêncio pode ajudar a compreender o papel dessa mulher, que se identifica de corpo e alma com Quedar e Salma. 

Sabe-se que as populações nômades ou seminômades de beduínos faziam uso da pele de cabra preta para confeccionar suas tendas. A própria raiz qdr, de Quedar, significa ser escuro, negro, moreno.66Ambas as tribos viviam em tendas feitas de pele de cabra preta. Assim, a primeira identificação com Quedar e Salma está na imagem evocada da cor preta da pele de cabra. A mulher de Ct 1.5-6 se autorreconhece como preta, assim como são pretas as tendas de Quedar e Salma. 

Segundo a tradição bíblica, Quedar é o nome do filho de Ismael, que era filho de Hagar, a egípcia, com Abraão (Gn 25.28). Para Luis Stadelmann,67 a menção de Quedar em Ct 1.5-6 é uma maneira proverbial de se referir a “lugares mais inóspitos ocupados por habitantes avessos à civilização“. É verdadeiro pensar que Arábia ou Cuch “evocava admiração e sentimento de imensa distância”.68 Mas é tendenciosa a afirmação de que essa região é povoada por “habitantes avessos à civilização”, pois tenta camuflar o grande trânsito que existia entre Egito, Cuch e Sabá, bem como suas riquezas e desenvolvimentos. 

Não existe problema para a tradição oficial aceitar que o Oriente, assim como a Assíria e a Babilônia, influenciou a constituição e a autocompreensão do antigo Israel. Contudo, outros povos parece que nenhuma influência tiveram na formação da identidade dos israelitas, principalmente os egípcios, cananeus e os cuchitas. O que têm em comum esses povos? Não causa estranheza que um lugar onde o antigo Israel viveu por mais de 400 anos, segundo reza a tradição, não tenha interferido em nada em sua autocompreensão? 

Nash69 atribui ao nosso “treinamento universitário”70 a responsabilidade por “impedir” e até “proibir” de ver a possibilidade de esses conjuntos de cosmovisões – a africana e o Antigo Testamento – estarem diretamente ligados. Esse autor71 afirma:

Parece lógico que um povo, morando quatrocentos anos em um espaço definido, venha a pensar em si mesmo como parte de uma paisagem, e essa paisagem, então, comece a afetar as pessoas que interagem nela […] É significativo […] que mesmo as narrativas da fuga do cativeiro – as tradições do Êxodo – reconheçam as profundas conexões que os hebreus têm com seus vizinhos anteriores e sua terra natal […] é possível ler os momentos do deserto, quando os hebreus ansiavam retornar às tarefas cotidianas de suas anteriores terras natais no Egito, como indícios de saudades (um anseio pelo conforto e segurança emocional e física de seu lar) pelos lugares de nascimento e mesmo suas casas nas quais nasceram e foram criados seus filhos. 

Por isso, teólogas negras e teólogos negros propõem o estabelecimento de outro centro, que considere a influência da África na autocompreensão cultural e religiosa do antigo Israel. 

Assim, torna-se possível reconhecer, por meio de relatos bíblicos, “memórias que evocam a África como o criadouro literal e cultural da identidade israelita em seu começo”.72 Quedar e Salma são uma forte evidência dessa participação ativa e constante de povos afro-asiáticos na formação e auto-compreensão do antigo Israel. Quedar e Salma descendem de Ismael, o pai de uma grande nação, os povos árabes (segundo a tradição).  

A raiz genealógica dos árabes está registrada em Gn 10, com os descendentes de Cam73 (Gn 10.6). É sabido que essa não é uma narrativa histórica, contudo, as narrativas “das origens dos/as israelitas podem ser úteis para entender como eles e elas se autocompreendiam e compreendiam o mundo ao seu redor.74

 Cuch,75 um dos filhos de Cam (segundo a tradição), é considerado o grande patriarca dos habitantes das terras do Sul; dele descendem os habitantes da Arábia (Hévila) e os de Sabá. O Egito e Canaã são seus irmãos. Este texto, Gn 10, além de reproduzir as originais afinidades étnicas dos povos afro-asiáticos, reflete também seus relacionamentos geográficos e históricos.76 Não apenas isso, mas esse mito também supõe uma grande conexão entre toda a humanidade,77 ou seja, um multiculturalismo. 

[…] estas histórias mostram que, enquanto possa ter havido uma observação de características fenotípicas entre os povos, não havia um sentido de que eles eram tão distantes a ponto de serem irreconhecíveis como companheiros, seres humanos que tinham nascido do mesmo ancestral mitológico ou epônimo […]. As culturas materiais dos israelitas e seus primos camitas [descendentes de Cam] e rivais cananeus são quase indistinguíveis. Os argumentos sociológicos para a teoria de que uma revolta camponesa ao invés de um Êxodo do Egito representou os inícios de Israel até mesmo usam estas similaridades para sugerir que, em alguns períodos, elas eram uma e a mesma cultura.

É evidente ser esse multiculturalismo uma experiência comum no antigo Israel, desde os primórdios, atravessando épocas, mas sendo suplantado com a imposição do projeto sacerdotal no pós-exílio. Esse foi um período xenofóbico, no qual o judaísmo pretendeu se impor como grandeza religiosa e cultural,78 em relação aos demais povos, nem que para isso negasse suas próprias raízes culturais e religiosas. Foi nesse período, o pós-exílio, que nasceu o judaísmo, sendo Esdras e Neemias os seus maiores representantes. 

Na nova sociedade judaica, idealizada pelos sacerdotes no pós-exílio, não se enquadra a experiência de Yahweh ao lado de outras divindades. Por isso, é preciso negar toda e qualquer influência religiosa de que o antigo Israel tenha bebido, desde os primórdios, quando ainda estava em formação na região de Cannãa. 

A autoapresentação da mulher no Ct 1.5-6 é um resgate da memória dessa experiência de Deus, a qual constituiu a autocompreensão do antigo Israel. Por meio desse poema, essa mulher não apenas relembra as relações com os afro-asiáticos desde sua origem, ou seja, uma experiência multicultural, como também denuncia o modelo social que deseja suplantar essas relações. 

Tanto Salma quanto Quedar remontam a uma mesma genealogia, ou seja, eles descendem de Ismael que, por sua vez, descende de Hagar, a escrava egípcia que foi expulsa da família de Abraão (segundo a tradição). Savina June Teubal informa que foram os redatores, sob a influência dos babilônicos e dos assírios, cuja tendência é marcadamente androcêntrica, que relegaram o papel de Hagar ao de uma concubina e escrava.79 Todavia, por meio das imagens evocadas no Ct 1.5-6, pode-se perceber que o papel de Hagar no imaginário feminino ultrapassa o papel relegado a ela de escrava e concubina. Para Teubal:80

As histórias bíblicas […] não falam de esposas ou concubinas banais, mas, em parte, sobre sacerdotisas ou visionárias que reconheceram as divindades femininas da terra e receberam autoridade para profetizar e prever o futuro por meio da inspiração divina. Além disso, estas matriarcas receberam autoridade, ou deram a si mesmas a autoridade, para mudar a ordem social.

Resgatar a memória81 de Hagar, que foi exilada com seu filho Ismael (segundo a tradição), é resgatar o poder visionário dessa mulher. A mesma história estaria se repetindo em Judá, séculos mais tarde: mulheres sendo expulsas, com seus filhos, do seio da comunidade. 

Essa experiência faz parte do conjunto de relações imagéticas que atuam como memória afetivo-social, ou seja, o imaginário social. Mediante esse resgate, pode-se perceber como essa mulher em Ct 1.5-6 apresenta-se como parte de uma coletividade. Resgatar Hagar é resgatar o próprio passado. Isso confere sentido à vida e, ao mesmo tempo, projeta para o futuro na construção da identidade.

Recontar a própria história torna possível a libertação da evidência opressora do presente, enquanto motiva a explorar possibilidades que potencialmente existem e que devem ser relacionadas. É uma maneira de empoderamento das mulheres diante de situações de exclusão. Para Teubal,82

[…] a história de Agar não é só o registro de mudanças em um sistema social; ela é uma reavaliação dos valores sociais, a reordenação de uma filosofia de vida. O significado da vida de Agar é que ela foi capaz de alcançar tanto a liberdade social quanto a espiritual. 

Segundo a tradição, Hagar foi expulsa da casa de Abraão, com seu filho Ismael, e, diante da incerteza de seu futuro, encontra-se com Deus. Esse encontro é uma experiência religiosa chamada teofania, que era considerada uma experiência exclusivamente masculina. “‘Deus age na epifania, Deus fala na teofania’, sendo então a teofania uma experiência exclusivamente masculina e a epifania feminina”.83

Um fato importante nesse relato é que Hagar é a única mulher na Bíblia que fala diretamente com a divindade (Gn 16.13-14; 21.17-18). Não apenas isso, ela é a única mulher na Bíblia que dá um nome à divindade que resgatou a ela e a seu filho, El’Ro’i, o deus que vê. Essa narrativa é o testemunho de que Hagar era uma mulher dotada de grande poder espiritual.

A coragem dela frente à adversidade, sua fé em si mesma e em sua dignidade, guiada por seu próprio poder espiritual, deve ser uma revelação para todas as mulheres. Acima de tudo, seu relacionamento íntimo com a divindade e sua inspiração para moldar sua própria comunidade não devem ser esquecidos.84

A memória de Hagar como uma mulher de grande poder espiritual torna-se modelo que inspira a superar a violência praticada pelos sacerdotes do segundo templo e, concomitantemente, acreditar que há um caminho alternativo. 

Parece que a mulher negra em Ct 1.5-6 está apontando que outra experiência do javismo, não excludente, é possível. Não somente isso, mas também que a mulher pode, tanto quanto o homem, ter suas experiências com a divindade, não necessitando da mediação de um sacerdote masculino. 

 

Considerações finais

Este ensaio interpretativo do livro Cântico dos Cânticos, capítulo 1, versículos 5 e 6, sob a perspectiva da Hermenêutica Negra Feminista, constitui mais um passo no processo de libertação e emancipação da mulher negra. A Hermenêutica Negra Feminista não pretende ignorar as contribuições do Movimento Feminista, do Movimento Negro e da Teologia da Libertação para o desenvolvimento desse processo, mas acredita ser indispensável à mulher negra tornar-se sujeito no labor teológico e, assim, reconstruir a presença negra feminina no mundo bíblico. 

Foi com esse objetivo que se apropriou do texto de Cântico dos Cânticos 1.5-6 e da porção de sua história interpretativa, demonstrando o quanto a interpretação bíblica tem sido condicionada por pressupostos racializados e propondo uma interpretação que faça da mulher negra protagonista e intérprete de sua própria história. 

 

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[Recebido em 18 de maio de 2012,  reapresentado em 27 de maio de 2013,  e aceito para publicação em 9 de julho de 2013] 

 

 

1 Athalya BRENNER , 2000, p. 11.
2 Elisabeth Schüsler FIORENZA, 1992, p. 31.
3 Teologia Feminista é uma teologia de mulheres de orientação feminista, que reconhecem, denunciam, criticam e desejam superar o patriarcado na sociedade, na Igreja e na convivência mútua. Ela é uma teologia contextual que leva em conta a historicidade das situações de vida e o caráter restrito das afirmações teológicas. A Teologia Feminista não é homogênea e nem pretende ser. Sob o nome de teologia feminista, estão reunidas numerosas posições, diferentes métodos de adquirir conhecimento, conceitos diversos de realidade e de teologia. Assim, o critério para julgar seus conhecimentos e resultado jamais será a correção de suas análises, e sim a força que ela tem para modificar o status quo (Catharina Joana Maria HALKES e Hedwig MEYER-WILMES, 2001, p. 502-505).
4 Jonneke BEKKENKAMP e Fokkelien VAN DIJK, 2000, p.75.
5 Existem feministas chamadas “feministas pós-bíblicas” que renunciam às suas raízes históricas e solidariedade com as mulheres na religião bíblica, que, segundo elas, é sexista em seu cerne. Fiorenza (1992, p. 15-16) argumenta que a posição feminista pós-bíblica corre o risco de se tornar a-histórica e apolítica, pois, com grande rapidez, concede que as mulheres não tenham história autêntica dentro da religião bíblica e, com grande facilidade, renuncia a herança bíblica feminista das mulheres. As feministas não podem admitir essa posição a-histórica e anti-histórica, porque é exatamente o poder de opressão que priva as pessoas de sua história.
6 São mulheres que reconhecem que religião bíblica continua a ter influência ainda hoje e que uma transformação feminista cultural e social no ocidente deve levar em conta a história bíblica e o impacto da tradição bíblica (FIORENZA, 1992, p. 16).
7 Phyllis TRIBLE, 1973, p. 48.
8 Racialização é o processo de injetar a consideração da raça numa situação onde ela não estava anteriormente ou insistir que a raça deve ser considerada um dado importante quando não é. (Peter Theodoro NASH, 2002, p. 20).
9 Assumimos o cânon protestante, que contém 66 livros. O cânon católico é composto por 73 livros.
10 BEKKENKAMP e VAN DIJK., 2001, p. 75-96.
11 Pablo ANDIÑACH, 1998, p.12-13.
12 Ivone GEBARA, 2001, p. 11.
13 Nome hebraico para Deus.
14 Algumas dessas Deusas eram Anat, Ishtar, Aserá, a Rainha dos Céus, etc.
15 GEBARA, 2001, p. 14.
16 Negritude foi o nome dado a um movimento que, em 1935, encabeçado pelo poeta negro Aimé Césaire, desejava promover a “conscientização e o desenvolvimento dos valores africanos”. É assim a compreensão simultânea da condição à qual a/o negra/o foi submetida/o pelo colonialismo, que, entre inúmeras imposições, negava sua história e potencialidades. É também a redescoberta dos valores e riquezas de um passado em comum que inspira a/os negra/os a tornarem-se sujeitos de sua própria história (Ellis CASHMORE, 2000, p. 388).
17 Pode-se dizer que a mulher negra é explicitada também em Números 12.1; 1 Reis 10.1-13, ambos no Antigo Testamento. No Novo Testamento, há a figura da Rainha de Sabá, registrada em 1 Reis 10.1-13, retomada por Jesus em Mateus 12.38-42 e Lucas 11.19.32.
18 A leitura eurocêntrica da Bíblia é a leitura que elege o homem branco, europeu, como norma e ideal de humanidade; era praticada no período de colonização, no qual os europeus transplantavam sua cultura e suplantavam as culturas autóctones.
19 Heitor FRISOTTI, 1994, p. 37.
20 FRISOTTI, 1994, p. 39.
21 James Hal CONE, 1986, p. 122, grifo do autor.
22 CONE, 1986, p. 123.
23 CONE, 1986, p. 239.
24 Maricel MENA LÓPEZ, 2008, p. 974.
25 Leonardo BOFF, 1980, p. 30-42.
26 Günter PADILHA, 2003, p. 111.
27 Ezequiel Luiz ANDRADE, 1998, p. 77.
28 MENA LÓPEZ, 2005, p. 183.
29 Para realizar essa tradução, utilizamos os seguintes materiais: Dicionário Hebraico-Português e Aramaico-Português (Nelson KIRST et al., 2000); Dicionário Internacional de Teologia do Antigo Testamento (Robert Laird HARRIS et al., 1998); Dicionário Bíblico Hebreo-Espanhol (Luis Alonso SCÖKEL, 1991); Dicionário Bíblico Hebraico-Português (Luis Alonso SCÖKEL, 1997); Bible Work for Windows (versão 4.0, 1998); Gramática do Hebraico Bíblico (Thomas LAMBDIN, 2003). Para as demais citações bíblicas, faremos uso da versão TEB (Tradução Ecumênica da Bíblia), salvo casos que apontarmos.
30 Em geral, é a quantidade de variações o critério usado pelas pesquisadoras e pesquisadores para estabelecer o estado de conservação de um texto bíblico. Quanto menor for o número de variações, melhor é o estado de conservação e preservação de um texto. Os poemas em Ct 1.5-6 apresentam duas variantes, em 5b e 5d, ou seja, ambas no versículo quinto, conforme apontado pelo aparato crítico da Biblia Hebraica Stuttgartensia (BHS)Em 5d, o editor da BHS propõe a leitura de shalemah, e não shelomoh, como está na BHS. Neste artigo será acolhida a sugestão do editor da BHS de usar shalema (Salma), e não shelomoh (Salomão).
31 SCÖKEL, 1997, p. 187-188.
32 Antônio HOUAISS e Mauro Salles VILLAR, 2009, p. 2006.
33 Aurélio Buarque de HOLANDA FERREIRA, 1999, p. 1400.
34 HOUAISS e VILLAR, 2009, p. 2006.
35 Luis STADELMANN, 1993, p. 40.
36 Estes dois poemas, Ct 1.5-6 3 Ct 5.10-11, apresentam características semelhantes na estrutura interna. No primeiro, temos uma autoapresentação e, no segundo, um poema descritivo; ambos os textos contêm a partícula “vav” (e) e a palavra shehorot (negra/o).
37 STADELMANN, 1993, p. 138.
38 Conforme SCHÖKEL, 1997, p. 27-31.
39 STADELMANN, 1993, p. 139.
40 NASH, 2003, p. 107.
41 MENA LÓPEZ, 2003, p. 6.
42 Ivo STORNIOLO, 2003, p. 28.
43 Maria Cornelia Norbeta DECKERS, 2000, p. 207.
44 Valmor da SILVA, 1993, p. 31.
45 Jesús LUZARRAGA, 2005, p. 170.
46 Humberto Eugenio MAIZTEGUI GONÇALVES, 2001, p. 104-105.
47 Dorothee Sölle, 1997, p. 351-353.
48 DECKERS, 2000, p. 211.
49 A patrística é o nome dado à filosofia cristã dos primeiros sete séculos, elaborada pelos Padres ou Pais da Igreja, os primeiros teóricos. A patrística consiste na elaboração doutrinal das verdades de fé do Cristianismo e na sua defesa contra os ataques dos “pagãos” e das heresias. Em geral, situa-se a patrística do século I até o século VII/VIII, até São João Damesceno (675-749), bispo em Damasco.
50 Gregório DE ELVIRA, 300/350-392, citado por John Robert WRIGHT, 2007, p. 390-395.
51 ORÍGENES, 1991, p. 107-129.
52 MAIZTEGUI GONÇALVES, 2001, p. 103.
53 Gianfranco RAVASI, 1988, p. 46.
54 MAIZTEGUI GONÇALVES, 2001, p. 103.
55 Francis LANDY, 1980, p. 50.
56 STORNIOLO, 2003, p. 28.
57 LANDY, 1980, p. 50.
58 Andiñach, 1998, p. 54.
59 Víctor MORLA, 2004, p. 102.
60 GONÇALVES MAIZTEGUI, 2001, p. 102.
61 Gregorio DE ELVIRA.
62 Na pesquisa bíblica, é considerada como evidência textual etnicamente negra a aparição dos termos Cus, cuschita e etíope. Na tradição bíblica Etiopia e Cus são sinônimos. Sendo cuchitas o termo que a Bíblia usa para se referir aos etíopes, Etopia vem do grego Aithiopia: “queimado do sol” (Eduardo HOORNAERT, 1988, p. 11-28). Na Bíblia, esses termos estão registrados em: Números 12. 1; Sofonias 1.1; 2 Samuel 18.21-33; Jeremias 36.14 e 38.7-13; entre outros textos.
63 MENA LÓPEZ, 2006, p. 22.
64 Salma é um povo árabe que vive no deserto, segundo a tradição, é conhecido como descendente do filho mais velho de Ismael, Nebaiot (Gn 25. 13), também identificadas como nabateus ou salomeus (Robert TOURNAY e Miriam NICOLAY, 1970, p. 44).
65 Quedar era uma tribo beduína com o mesmo nome do território que ocupava.
66 MORLA, 2004, p. 102.
67 STADELMAN, 1993, p. 40, grifo nosso.
68 Sebastião Armando Gamaleira SOARES, 1988, p. 32.
69 NASH, 2005, p. 40.
70 NASH, 2005, p. 40.
71 NASH, 2005, p. 49-50, grifo do autor.
72 NASH, 2005, p. 51.
73 Segundo Gn 9.8-27, Noé amaldiçoou Cam porque este viu a nudez de seu pai e, por causa disso, o filho será servo de Jafé e Sem. Soares aponta para o caráter etiológico do texto diante de um problema que estava afligindo os isra-elitas. Eles precisavam explicar a subordinação dos cananeus. E fizeram isso colocando os cananeus debaixo de uma maldição (SOARES, 1988, p. 32-33). É sob a ideologia racista que, ao longo da história interpretativa, a maldição de Cam tem servido para legitimar a escravidão de povos africanos e até hoje legitimar o preconceito racial.
74 NASH enfatiza que não se está tomando as histórias literalmente, mas literariamente, visto que essas histórias podem fornecer dados antropológicos sem serem tomadas como afirmações antropológicas (2005, p. 51).
75 Na tradição bíblica, Etiópia e Cus/Cuch são sinônimos, sendo cuchitas o termo que a Bíblia usa para se referir aos etíopes. Etiópia vem do grego Aithiopia: “queimado do sol” (HOORNAERT, 1988, p. 11-28).
76 SOARES, 1988, p. 32.
77 NASH, 2005, p. 53.
78 A peculiaridade da comunidade judaica desse período foi a definição de si mesma como magnitude não apenas étnica, senão, concomitantemente, religiosa, ou seja, depois do retorno dos exilados houve uma simbiose de comunidade de fé e nação (Rainer ALBERTZ, 1999, p. 587).
79 Savina June TEUBAL, 2000, p. 268.
80 TEUBAL, 2000, p. 273-274.
81 Ter memória é ter poder. O poder da memória é sinônimo de poder da história. A memória é essa possibilidade de resistência ao esquecimento a ao conformismo. E de nada valerão nosso esforços para “resgatar” a memória, se não for para liberar do esquecimento a criação (o ato de criar), esse poder que nos exige inventar o presente e deliberar sobre o futuro (Renate GIERUS, 2004, p. 44).
82 TEUBAL, 2000, p. 274.
83 MENA LÓPEZ, 2005, p. 185.
84 TEUBAL, 2000, p. 275.

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