Jovens feministas reunidas em Lisboa. E não é para queimar sutiãs

feminismos e feministas. De várias cores, origens sociais e idades. Este fim de semana, mais de cem encontram-se para debater uma nova agenda de reivindicações. Marcada pela crise, precariedade, redes sociais e as vozes das minorias

Do Expresso

Raquel, Tiago e Anya têm encontro marcado para este sábado e domingo, em Lisboa. Vão juntar-se a mais de uma centena de jovens para debater a causa da igualdade de direitos para homens e mulheres. Têm menos de 35 anos e trazem para o palco das reivindicações feministas novas palavras de ordem. Defendem as minorias étnicas, a participação dos homens ao lado das mulheres e trazem sotaques até agora pouco ouvidos nestas reuniões em Portugal.

O Encontro Nacional de Jovens Feministas pretende juntar jovens ativistas, preocupados com a transformação social, e todos os que estiverem interessados na igualdade de género. Eles são de todo o país, segundo a organização, e trazem diferentes percursos sociais e profissionais, pessoais e políticos, e pretendem produzir uma reflexão conjunta sobre as várias formas de concretizar os ideais do feminismo. O primeiro dia é dedicado à apresentação de projetos de investigação, intervenção e ao lançamento de desafios para a discussão em grupo. No segundo dia haverá workshops e os resultados serão resumidos, em plenário, num documento-síntese.

Este texto, construído de forma participativa, terá em conta quatro temas fundamentais: o poder, o corpo, a identidade e os feminismos. Nora Kiss, coordenadora do encontro, explica que “estes são temas clássicos da luta pela igualdade, como a violência de género, a participação nas tomadas de decisão ou a desigualdade salarial”. Mas a ativista sublinha que “não existe um levantamento do que é a agenda jovem feminista nestas áreas, o que se sabe é que as/os jovens introduzem novos aspetos que têm a ver com o mundo que mudou radicalmente, se complexificou e trouxe novas dimensões para o debate, redefinindo posições em temas como a identidade cultural, de género ou a orientação sexual”.

E, apesar das tentativas, Nora Kiss reconhece que ainda há muito caminho por trilhar: “Apesar dos esforços, ainda não conseguimos mobilizar a agenda política e mediática para a dimensão da crise nas mulheres jovens. É uma evidência que a precariedade afeta umas e outros de modo diferente, mas permanece uma visão que não reconhece estas diferenças”. Questões como o regresso à casa e de como o desemprego das jovens mulheres tem servido para “ocupar a esfera do cuidado, pela falta de dinheiro para recorrer a creches e lares. Ou seja, a crise tem motivado um regresso aos papéis sociais tradicionais”.

A internet, explica a ativista, foi o espaço que as jovens encontraram para expressar as suas insatisfações, preocupações e propostas. “Veio contribuir para a quebra do isolamento do pensamento desafiante ao nível do género”, afirma. Mas a principal novidade do encontro deverá ser a presença de representantes de grupos tradicionalmente com pouca visibilidade na sociedade, como minorias étnicas ou opção sexual. A prova é que há inscritas representantes de comunidades ciganas e negras. “É algo praticamente inédito em Portugal”, garante Nora Kiss.

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Anya Likhman

Raquel Rodrigues é um claro exemplo destas mudanças e de um grupo de feministas que querem ainda mais alterações. Tem 31 anos, é filha de imigrantes cabo-verdianos e quer trazer para o encontro as vozes das mulheres negras. “Comecei a lidar com as questões do racismo desde muito cedo, em casa. Depois, li muito e fui trabalhando estas construções sociais, porque uma pessoa não nasce mulher ou negra, é na socialização que estas categorias são construídas”, explica. A reunião deste fim de semana é também uma preparação para o primeiro encontro de feministas negras, no fim deste mês. Raquel avisa que é preciso incluir as minorias no debate porque, diz, “o feminismo tradicional não se preocupa com aspetos fundamentais para alguns grupos minoritários, como as questões raciais”.

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Anya Likhman

Ucraniana, com 21 anos, em Portugal desde os 17, Anya Likhman vai contribuir com o seu sotaque e as ideias de quem chegou ao feminismo há muito pouco tempo. “Eu reproduzia o modelo patriarcal em que fui educada e eu era machista, posso dizer”, afirma. Estudante de Antropologia, foi na universidade que as questões de género se tornaram importantes. Leu, pesquisou e começou a sentir-se incomodada. Percebeu que Portugal era bastante mais favorável à igualdade de género do que a Rússia e foi através do Facebook e da internet que começou a participar na discussão de temas feministas. Descobriu, por exemplo, que há formas de “feminizar” palavras russas que se escreviam apenas no masculino. Como professor.

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Tiago Landreiras

Um homem entre as mulheres. Há alguns anos que é assim. Tiago Landreiras, 24 anos, licenciado em Direito, é assumidamente “um feminista”, dito por ele e sem hesitações. “Sou um ativista assumido, sem medos nem receios, mas nem sempre é fácil”, conta. Não é fácil, por exemplo, conquistar outros homens para a sua causa: “É muito complicado, na teoria todos são a favor, mas na hora de dar a cara, torna-se um problema”. Diz que esta descoberta “foi solitária”, e que foi o ambiente universitário que o desbertou para as reivindicações da igualdade de género. Ao olhar para o seu percurso, Tiago reconhece que nunca foi olhado de lado pelas mulheres, embora, “no início, causasse algum espanto”. Sobretudo, diz que trabalha para “desconstruir esterótipos e, sobretudo, lutar contra a discriminação”. A sua preocupação maior são os casos de violência de género e a morte das mulheres nas mãos dos homens.

O evento é um projeto da Rede Portuguesa de Jovens para a Igualdade de Oportunidades entre Mulheres e Homens(REDE), em parceria com a e-APEM (Associação Portuguesa de Estudos sobre as Mulheres) e será cofinanciado pela Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género. A reunião deste fim de semana acontece no Centro de Juvetnude de Lisboa, no Parque das Nações.

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