O que significa ser fruto de um país que foi colonizado?

Em meio à preparação do editorial de moda da Coleção Vozes para a Black Fashion Week Paris, em 2015, discutíamos em equipe, como construir uma imagem para comunicar o conceito da coleção e debatíamos sobre os impactos da lógica colonial ainda presentes no nosso cotidiano. O local de apresentação seria a França, nação que colonizou muitos países africanos e, até tempos recentes, muitos territórios continuam sob sua administração. Nosso desafio era provocar um pensamento sobre a resistência das comunidades negras nesse contexto e foi assim, que a paisagem da região de quilombos da Bacia do Iguape nos pareceu ideal, pois no Recôncavo Baiano convivem diversas expressões culturais de ascendência africana com os traços arquitetônicos coloniais, e as ruínas de um convento do século XVII sugeriam a locação perfeita para a fotografia.

Por Carol Barreto Do Revista Raça

“A Coleção VOZES evoca um debate sobre a pós-colonialidade e questiona: O que significa ser fruto de um país que foi colonizado? Que marcas de identidade podem ser interpretadas como subalternidade ou resistência? ”. Diante dessas questões imergi no processo criativo. Uma das inspirações foi a visualidade multicolorida de um grupo dentre as mulheres Herero da Namíbia, observei como modificaram a indumentária vitoriana imposta pela colonização alemã no século XIX, por meio do redesenho do traje com o patchwork multicolorido. Também analisei as provocações pós-identitárias na obra do artista anglo-nigeriano Yinka Shonibare, que fez releituras de cenas clássicas da nobreza européia do século XVIII em esculturas feitas com manequins sem cabeça, vestidos com peças características dessa época, mas reproduzindo suas vestes com as capulanas.

A partir dessas referências, partimos para a pesquisa de materiais e técnicas. Foi quando me recordei das colchas de retalhos que cobriam as camas em Santo Amaro – BA e percebi como na história das mulheres negras do Recôncavo Baiano, os trabalhos artesanais que sustentaram o luxo dos grupos privilegiados, ao mesmo tempo, era o que matinha a condição de vida de muitas famílias trabalhadoras, situando-as num limiar entre a subalternidade imposta e suas estratégias de resistência, que com o passar do tempo foram transformando essa produção, imprimindo os traços identitários de sua comunidade. Aprofundando a pesquisa sobre o patchwork, o consultor de design Maurício Portela, sugeriu uma parceria com a artista equatoriana Karin Galvão, cujo trabalho evoca uma das mais fortes expressões das mulheres latino-americanas: o design têxtil artesanal.

Utilizando técnicas de reaproveitamento de material que seria descartado por uma confecção, os retalhos de tecido com estampas africanas e florais, foram manipulados sob orientação da artista e partimos para a construção de tecidos exclusivos, confeccionados por um grupo de estudantes de design de moda e artes visuais. Trabalhando diariamente no atelier, entre agosto e novembro de 2015, iniciamos um processo colaborativo de reaproveitamento de resíduos têxteis para produzir as peças da Coleção Vozes.

Definido o painel semântico, materializamos as peças de roupa, adereços e a trilha sonora do desfile após um longo período de experimentação e reflexão, na tentativa de contribuir para a desconstrução dos processos de invisibilização e de apropriação cultural costumeiros no design de moda, onde muitas vezes se recortam referências de alteridade para elaboração de uma coleção, mas sem creditar aos grupos humanos que as constituem o devido mérito ou elaborar representações respeitosas às suas identidades. Centralizando esse compromisso, passamos para a etapa de elaboração de imagem de moda e, inspirada nas lutas e na resistência das mulheres das comunidades quilombolas, definimos como locação da fotografia a comunidade de São Francisco do Paraguaçu em Cachoeira – BA.

Às margens da Bacia do Iguape, as ruínas do Convento de Santo Antônio do Paraguaçu fundado em 1649, mantêm os traços da colonização ao lado das canoas e utensílios de pesca característicos do cotidiano da comunidade. Esse cenário com seu aspecto deteriorado pelo tempo e pelas mudanças culturais e sociais da comunidade, foi referência para a materialização do debate proposto pela Coleção Vozes. Como personagem central, buscamos uma mulher cujo cabelo também significasse uma forma de expressão de resistência cultural, e foi assim que, sob o céu azul de uma manhã de sábado, Natan Fox fotografou Ana Vitória, com seus dreadlocks azuis.  Nossa convidada, não é modelo, mas ativista, e montou em família uma inovadora empresa especializada no cuidado para cabelos de pessoas negras, a Mukunã Dreadlocks.  Ela integrou a equipe junto com seu companheiro que desenvolveu os penteados, e com sua criança de quatro meses, que a cada pose clicada reivindicava uma mamada. Ana interpretou na fotografia algumas fases da história de opressão e vitória vividas pelas mulheres negras, sendo uma mulher tão real quanto muitas que ali convivem e como as tantas pessoas que se uniram para realizar esse projeto.

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