Militantes relembram escravidão no maior ponto de tráfico de pessoas na África

Ato ocorreu na abertura da conferência pan-africanista, realizada por movimentos populares em Gana

Mais de 400 pessoas de 50 países participam do evento em Winneba Foto: / Nina Fideles

Por Rute Pina No GGN

Brasil de Fato | Elmina (Gana)

Militantes de 50 países relembraram, nesta quinta-feira (20), a dispersão forçada da população africana — movimento que também é conhecido como diáspora negra — no maior ponto de exportação de escravos da África.

A atividade simbólica ocorreu no Castelo de São Jorge da Mina como abertura da 3ª Conferência Pan African Today (Pan-africanismo hoje, em português) em Winneba, Gana.

Para Jonis Ghedi Alason, que integra a comissão organizadora do encontro, o Castelo de São Jorge da Mina é o ponto inicial de uma luta que ainda persiste.

“É onde inicia nossa exploração, mas também a resistência dessa exploração. Tem um significado, uma história. É preciso entender isso para continuar e avançar na luta pela unidade pan-africana e socialista. Por isso, foi importante começar a conferência com o reconhecimento de onde isso começa. Estar aqui foi quase um reconhecimento físico disso”, ressalta.

Memória da escravidão

O castelo está localizado na cidade de Elmina, a 159 quilômetros da capital Acra. Pelas masmorras daquele edifício passaram mais de 7 milhões de pessoas que foram capturadas para trabalho escravo nas novas colônias na América Latina e no Caribe, incluindo o Brasil. Apenas metade delas sobreviveram aos castigos, violações e à extensa viagem em embarcações degradantes.

O castelo construído no século 15 foi o maior ponto de comércio ilegal de pessoas para fins de escravidão. Foto: Nina Fideles

Com capacidade máxima para 1 mil pessoas, a lotação, no entanto, chegou ao dobro disso. Lá, homens, mulheres e crianças, que ficavam divididos em diferentes masmorras, aguardavam por meses uma sentença a uma vida de escravidão em outros continentes.

O “corredor do não retorno” era o último local pelo qual passavam os que caminhavam para os navios, que os levariam a uma dolorosa viagem. Este momento era o único em que homens e mulheres, por vezes casais separados, se encontravam. Como eram impedidos de se comunicar, apenas choravam.

Homens, mulheres e crianças eram separados. Foto: Nina Fideles

O castelo é também a mais antiga construção europeia no Oeste da África. Erguido por portugueses em 1492, o edifício era ponto de comércio de mercadorias como sal e ouro, e de hospedagem para missionários religiosos que pretendiam divulgar o cristianismo. Com a expansão da colonização de países na América Latina e Caribe, o mercado migrou de coisas para pessoas.

Em 1637, o Castelo foi tomado pelos holandeses, quebrando 157 anos de domínio lusitano. Foi o período em que toda a Europa se envolveu em tráfico de pessoas e as condições ficaram ainda piores. Depois, foram 235 anos nas mãos dos holandeses e 87 anos em domínio britânico.

Mesmo com a proibição da venda de escravos na primeira década do século 19, o local ainda continuou com o tráfico de pessoas. Apenas na década de 1870 que o edifício passou a servir para fins administração da Grã-Bretanha e de treinamento de soldados que serviram na Segunda Guerra Mundial.

Hoje, o governo de Gana faz a administração de um memorial no local. Os cativeiros e o “corredor do não retorno” estão abertos à visitação. Ato Ashun trabalha como guia no local e escreveu livros sobre a história da construção. Ele afirma que o Castelo de São Jorge da Mina é a raiz dos problemas que a África enfrenta. Mas, para ele, as soluções também passam por ali.

“Sem saber de onde viemos, não podemos saber para onde vamos. Saber exatamente o que aconteceu no passado muda nossa maneira de pensar. Então, conhecer as masmorras deste castelo é muito importante para qualquer africano”, pondera.

Nenhum minuto de silêncio

É por esta razão que o ato de abertura da conferência levou as entidades ao local. A militante brasileira Andreia Ribeiro foi uma delas. Nascida no estado do Maranhão, ela vive há mais de um ano na Zâmbia como parte da brigada Samora Machel do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST).

Ela relata o momento: “É como se eu estivesse sentido na pele o que meus irmãos e irmãs africanas sentiram naquele momento. Foi de grande emoção para mim. Surgem sentimentos de angústia, de indignação, de revolta”, diz emocionada.

Em Gana, militantes fizeram um ato em memória de seus antepassados. Foto: Ihsaan Haffejee

Ribeiro pontua, no entanto, que o sentimento deve ser ressignificado por meio da luta por vida digna, que começou com a resistência dos homens e mulheres escravizados.

“A gente revive ainda o que já aconteceu com nossos antepassados, mas agora de forma mascarada, maquiada. Isso precisa ser denunciado. E a melhor forma é sempre a gente discutir, debater e tentar encontrar saídas para que tudo que a gente se indigna.”

Conferência

A 3ª Conferência Pan African Today ocorre até o próximo domingo, dia 24 de setembro, e reúne em Gana mais de 400 pessoas de 50 países.

Jonis Ghedi Alason afirma que o objetivo do encontro é entender como caminhos históricos ainda impactam no presente. “O desenvolvimento do capitalismo só pode ser compreendido, de verdade, quando a gente reconhece a história da escravidão como parte deste desenvolvimento”, pontua.

Além da Pan African Today, o evento é organizado por movimentos o Sindicato Nacional dos Metalúrgicos da África do Sul (Numsa); o Partido Socialista da Zâmbia; Democratic Way, partido de esquerda de Marrocos; e o Fórum Socialista da Gana.

Segundo Alanson, entre os principais objetivos está a identificação de forças progressistas de esquerda no continente e a construção da unidade dessas organizações.

“A conferência pretende encaminhar resoluções que vão para além do encontro entre as organizações, para que elas trabalhem umas com as outras por todo o continente, no sentido do pan-africanismo”, sintetiza Alason.

A conferência também é a etapa preparatória dos países africanos para a Assembleia dos Povos, que reunirá movimentos populares de todo mundo em Caracas, Venezuela, no próximo ano.

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