Cinco lições vindas da Bahia por Flávia Oliveira

Do enredo que transbordou restaram cinco lições

no O Globo

Foto: Marta Azevedo

Faz uma semana, a então diretora de estilo da “Vogue” festejou o aniversário de 50 anos com uma festança na capital baiana. O rega-bofe foi mal digerido por ativistas e intelectuais negros, depois que aniversariante e convidados postaram nas redes sociais fotos em que apareciam sentados numa cadeira de vime ladeados por mulheres negras em trajes típicos. Os críticos enxergaram nas imagens a representação de um Brasil escravocrata que, 130 anos após a Abolição, insiste em se mostrar. A anfitriã Donata Meirelles refutou a temática Brasil Colônia, num pedido de desculpas em que relacionou o assento ao candomblé. Atraiu, assim, a indignação do povo de santo pela profanação de um elemento sagrado, o trono da ialorixá. As críticas alcançaram a revista que, em resposta, prometeu ampliar a diversidade na equipe e anunciou a criação de um fórum para imprimir conteúdos que aplaquem as desigualdades nas páginas. Na sequência, Donata se demitiu. E o grupo de baianas de receptivo denunciou à polícia crime virtual de difamação pela associação de suas imagens à escravidão e por terem sofrido ofensas, ameaças e até cancelamento de contratos. Do enredo que transbordou da Bahia para o Brasil, e daqui para a imprensa internacional, restaram cinco lições:

1) A reprodução de imagens que evocam o passado escravocrata do Brasil, à la Jean-Baptiste Debret ou Johann Moritz Rugendas, ofende grupos sociais conhecedores das mazelas que o sistema legou aos afrodescendentes. É ferida que ainda não parou de doer, uma vez que a Lei Áurea não veio acompanhada de políticas de inclusão socioeconômica para os libertos. Ainda hoje, pretos e pardos são maioria nos indicadores de vulnerabilidade social, trabalho informal, desemprego, baixa renda e escolaridade, habitação precária, carência de serviços públicos básicos, população carcerária, homicídios de mulheres e jovens. Os estereótipos de subalternidade ainda prevalecem nas indústrias cultural e midiática, ainda que o país experimente crescente protagonismo negro em anos recentes.

2) As religiões de matriz africana exigem — e merecem — respeito num país em que liberdade de credo é garantia constitucional. Folclorização, perseguição, demonização e profanação de terreiros de candomblé e umbanda atravessam a História do Brasil. É natural que sacerdotes e fiéis se ofendam ao se deparar com a descaracterização de um símbolo sagrado. A cadeira pavão de vime, que compôs o cenário da festa, “tornou-se emblemático dos ativismos e resistências negros”, escreveu o antropólogo Helio Menezes sobre o episódio. É o assento tradicional das mães de santo. Aparece em imagem icônica do movimento dos Panteras Negras (EUA, 1967); em capa de disco de Elza Soares (1974), que também criticou a festa em redes sociais; em foto de Mãe Hilda Jitolu, matriarca do bloco afro Ilê Aiyê, que comemora 45 anos neste 2019.

3) Os negros brasileiros não são homogêneos. Pensar que 56% da população pensam e sentem uniformemente é evidência do racismo estrutural, que confina mulheres e homens negros a estereótipos do passado. O grupo majoritário na sociedade brasileira é diverso em vivências, origem geográfica, classe social, identidade de gênero, orientação sexual, profissão, posição ideológica, religião, modo de vida. Diferem entre si, tal como os autodeclarados brancos. É ignorância ou má-fé identificar em divergências tornadas públicas desunião — e consequente desqualificação de argumentos e pleitos.

4) É legítimo o trabalho em trajes típicos. O ofício das Baianas de Acarajé, do modo de preparo da iguaria à indumentária das profissionais, é reconhecido como patrimônio imaterial pelo Iphan desde 2005. Delas derivam as baianas de receptivo, que trabalham em eventos. Não há nada de errado em contratá-las. Mas há limites de respeito à História e à religiosidade afro-brasileiras que não devem ser ultrapassados. Em razão disso, o Ministério Público do Trabalho articula a criação de um protocolo local pelo respeito ao trabalho digno, à cultura e religiosidade da população negra baiana nos setores de turismo, entretenimento e eventos. É forma de acomodar os pleitos de cada grupo e dar segurança jurídica a quem contratar as profissionais, que não devem ser prejudicadas.

5) A sociedade hiperconectada derrubou a fronteira entre público e privado. Pessoas jurídicas contaminam pessoas físicas e vice-versa. Um profissional será cobrado pelo mau comportamento de seu empregador, cliente, fornecedor. Atitudes condenáveis de um indivíduo podem resvalar na corporação ou marca a que esteja vinculado. As parcerias são indissociáveis. Convém saber.

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