Abismo salarial entre negros e brancos é o maior desde 2012

Na pandemia, a diferença salarial entre brancos e negros atingiu o maior patamar já registrado. No terceiro trimestre, a distância chegou ao pico de R$ 1.492, o maior valor desde 2012, início da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (Pnad), do IBGE.

Apesar da ligeira melhora no fim do ano, quando o intervalo caiu para R$ 1.405, isso não foi suficiente para mudar o quadro de crise severa para os negros, aumentando a desigualdade racial que já era alta. O cruzamento de informações foi feito pelo pesquisador Bruno Ottoni, do IDados.

Na mesma linha vai o estudo dos pesquisadores Ian Prates e Márcia Lima, do Afro (núcleo de pesquisa e formação em raça, gênero e justiça racial do Cebrap), que mostra perda de emprego mais forte em vagas com carteira, sem carteira, entre trabalhadores domésticos e outras categorias de emprego.

— Os negros são mais prejudicados por serem mais pobres, por terem estudado menos. Nos serviços domésticos, nos quais a quase totalidade é de mulheres, as negras perdem mais do que as brancas. A pandemia ampliou as desigualdades que já existiam e que vinham piorando antes mesmo da Covid — afirma Márcia.

Ottoni diz que, além da escolaridade e de estarem mais vulneráveis no mercado de trabalho, o preconceito é outro fator que impede a ascensão social dos negros e potencializa os efeitos da crise.

— É um fator bem evidente e pacificado pela literatura: o preconceito. Mesmo quando se controla por todas as diferenças, o branco continua ganhando mais. É um dos fatores por trás do salário mais baixo dos negros.

Fabiana Farias, de 40 anos, moradora de Curicica, na Zona Oeste do Rio, foi demitida de seu cargo como analista comercial em uma prestadora de serviços e teve de cortar gastos para conseguir se manter e ajudar seus três filhos e netos.

Ela conta que também foi obrigada a abandonar um antigo sonho: a graduação em Direito. No mercado de trabalho, convive com a dificuldade maior para os negros.

— Sou mulher, sou preta, periférica, ainda estou na faculdade. Nós temos que nos mostrar muito mais eficazes que os demais, fazer duas vezes melhor que os outros para não sermos as primeiras a serem descartadas ou retiradas do espaço de decisão. E temos que saber lidar com o racismo, desviar, sem dizer para nossos colegas que eles estão sendo racistas, pois provavelmente seremos demitidas — afirma.

Com a perda de emprego, Fabiana teve de reduzir despesas. Foi morar em um local mais barato e vem sendo obrigada a atrasar algumas contas:

— Também deixei de pagar e não renovei minha matrícula na faculdade, que é a minha esperança para dias melhores no mercado de trabalho e um propósito de vida.

Voltar ao mercado não será fácil. Estudo do Afro, também assinado por Caio Jardim Souza, Gisele Silva Costa e Thayla Bicalho Bertolozzi, mostra que a taxa de desemprego dos negros subiu de 11,4% para 16,6%, enquanto entre brancos subiu de 9,17% para 11,5% entre maio e novembro.

Menos emprego doméstico

Márcia diz que a situação dos jovens negros é pior. A proporção de negros sem atividade escolar é muito grande, e a parcela de “nem-nem”, jovens que não trabalham nem estudam, aumentou.

—Vai engrossar o desemprego entre os jovens negros. Ainda não contabilizamos o impacto da morte nas famílias pobres, principalmente para os jovens. Um aluno cotista, que precisa de ajuda da assistência social para pagar passagem e alimentação, não vai voltar a estudar se o pai tiver morrido. O impacto vai ser devastador — alerta Márcia.

E a pobreza aumenta. Já voltou aos níveis dos anos 1990, segundo o estudo. Entre os 10,6 milhões de brasileiros que dependiam unicamente do auxílio emergencial, 7,2 milhões são negros.

RI Rio de Janeiro (RJ) 24/07/2020 – Fila na Caixa Econômica de Queimados. Pessoas tentando receber o Auxílio emergencial e o FGTS emergencial. Foto Fabiano Rocha / Agência O Globo Foto: Fabiano Rocha / Agência O Globo

Fabiana está tentando voltar ao mercado. Vende comida e roupas:

— Durante a pandemia, criei diversas maneiras de fazer algum dinheiro.

E até nas profissões que pagam menos, como a de empregada doméstica, a segmentação persiste. Prates afirma que nas regiões mais ricas, onde se paga melhor, o emprego doméstico é menos negro. Já no topo da educação, entre aqueles que têm superior, os negros também perdem.

Há o dobro de brancos com ensino superior, isso significa mais chance de trabalho remoto, ou seja, menos desemprego e exposição ao vírus. Em algumas funções que pagam mais, porém, os brancos acabam voltando mais ao trabalho presencial.

— Isso é explicado pelo tipo de ocupação. Enquanto os brancos são diretores, gerentes, profissionais liberais que começaram a voltar, os negros são professores que ainda estão dando aula de casa — afirma Prates.

Márcia alerta que, sem políticas inclusivas, com recorte racial e de gênero, a situação não vai melhorar:

— A gente gera desigualdade co produzindo políticas desiguais, e as iniciativas privadas são muito pequenas.

Rosália Lemos, professora do Instituto Federal de Educação e do movimento feminista negro, chama atenção para a exposição maior da população negra ao vírus:

— Os jovens negros são os entregadores, os maqueiros nos hospitais, e sofrem mais com transporte lotado.

Segundo Sandro Pereira Silva, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), dez milhões de empregos foram perdidos na pandemia, a maioria informais:

— Esses trabalhadores informais são majoritariamente negros. O impacto negativo foi muito maior para população negra em qualquer indicador: desemprego, desalento. Se não fosse o auxílio emergencial, a situação ficaria pior.

Para Ottoni, a previsão daqui para frente não é das melhores. A desigualdade salarial entre negros e brancos vai continuar aumentando, com a piora da pandemia:

— Os negros têm maior chance de não conseguir voltar ao mercado. Terão mais dificuldade nessa volta. (*Estagiário sob a supervisão de Danielle Nogueira) 

 

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