Trabalhadores de colheita de uva são resgatados em regime análogo à escravidão no Rio Grande do Sul

OUTRO LADO: vinícolas dizem que respeitam as leis, que contrato com fornecedor de empresa terceirizada foi rompido e que se solidarizam com trabalhadores

Homens contratados para trabalhar na colheita de uva em Bento Gonçalves, na serra gaúcha, foram resgatados na quarta-feira (22) à noite em situação análoga à escravidão.

Segundo os órgãos que participaram da operação —Ministério do Trabalho e Emprego, Ministério Público do Trabalho e polícias Federal e Rodoviária Federal—, 192 trabalhadores relataram ter sido enganados pela promessa de emprego temporário, salário de R$ 4.000, alojamento e refeições pagas.

Eles trabalhavam para duas empresas que eram contratadas pelas vinícolas Aurora, Cooperativa Garibaldi e Salton, importantes produtoras da região. As três dizem que não tinham conhecimento da situação relatada pelos trabalhadores. A Garibaldi e a Aurora dizem que seus contratos com essas empresas eram somente para o serviço de descarregamento de caminhões. Leia abaixo as notas enviadas pelas empresas.

Segundo a Inspeção do Trabalho, porém, os trabalhadores resgatados na quarta-feira atuavam nos parreirais. A rotina de trabalho, que começou no início de fevereiro, era de domingo a sexta, das 5h às 20h, na colheita de uva.

As procuradoras Ana Lucia Stumpf González e Franciele D’Ambros, do MPT no Rio Grande do Sul, ainda apuram a suspeita de que o transporte até a serra gaúcha tenha sido cobrado dos trabalhadores. O alojamento, que deveria ser fornecido pelo empregador, era descontado dos salários, segundo o MPT.

O resgate foi organizado depois que um grupo conseguiu sair da pousada usada como alojamento. Em Caxias do Sul, buscaram uma base da PRF e relataram a situação em que viviam.

Os trabalhadores relataram à Inspeção do Trabalho que eram submetidos a choques elétricos.

As armas de choque eram usadas, segundo contaram aos procuradores e auditores, para que acordassem. A origem desses trabalhadores —todos de Salvador (BA)— também seria citada de maneira pejorativa pelo encarregado.

Eles contaram que a comida fornecida pela empresa chegava a eles já estragada. Caso quisessem comprar outros alimentos, só poderiam fazê-lo em um mercadinho a poucos metros do alojamento, que praticava, segundo eles, preços superfaturados. As compras, disseram, eram descontadas do salário.

“Como foram recrutados na Bahia, já vieram na viagem para o local de trabalho com dívidas de alimentação e transporte. Fora isso, todo o consumo deles no alojamento era anotado num caderno do mercado local, que vendia os produtos a preços extorsivos”, disse o auditor fiscal do Trabalho Vanius João de Araújo Corte, em nota.

“Além disso, eles relataram que iniciavam o trabalho às 4h da manhã e iam até as 8h ou 9h da noite, numa jornada extremamente exaustiva.”

Ao MPT e ao Ministério do Trabalho os homens relataram também que ficavam sob vigilância de seguranças armados. No alojamento, localizado no bairro Borgo, viviam em situação improvisada.

Quando tentavam deixar o local, segundo relataram aos envolvidos na operação, eram impedidos pelos seguranças por estarem em dívida com o empregador. Para o MPT-RS, o conjunto de relatos dos trabalhadores foi suficiente para a caracterização do trabalho análogo à escravidão.

A Inspeção do Trabalho descreveu o alojamento em que esse empregados viviam como um lugar sem segurança e sem higiene. Depois do resgate, os trabalhadores foram levados a um ginásio local, onde passaram a noite. Nesta sexta (24) à noite, eles começaram a receber seus pagamentos. Além de verbas rescisórias e demais direitos trabalhistas, eles receberão o transporte de volta para casa e três parcelas do seguro-desemprego.

Segundo o MPT-RS, foram 192 homens resgatados com idades entre 18 e 57 anos e tinham, a maioria, entre 20 e 39 anos.

Um homem que seria o responsável pelas empresas Fênix Serviços de Apoio Administrativo e Oliveira & Santana, que contrataram os trabalhadores resgatados, foi preso e libertado mediante pagamento de fiança de R$ 39.060.

A Fênix declarou que “os graves fatos relatados pela fiscalização do trabalho serão esclarecidos em tempo oportuno, no decorrer do processo judicial”.

O QUE DIZEM AS VINÍCOLAS

A vinícola Aurora disse que “se solidariza com os trabalhadores e reforça que não compactua” com nenhum tipo de trabalho análogo ao de escravo. Afirmou também que o contrato com a Oliveira & Santana tratava somente carga e descarga de uva.

“A Aurora conta com 540 funcionários, todos devidamente registrados e obedecendo à legislação trabalhista. Porém, na safra da uva, dentro de um período de cerca de 60 dias, entre janeiro e março, a empresa depende de um grande número de trabalhadores, se fazendo necessária a contração temporária para o setor de carga e descarga da fruta, devido à escassez de mão de obra na região.”

A empresa também disse que pagava R$ 6.500 à terceirizada por mês a cada trabalhador e que todos os seus prestadores de serviços recebem alimentação durante o turno de trabalho. A vinícola informa que oferecia condições dignas de trabalho no horário de expediente e os gestores responsáveis desconheciam a moradia desumana em que os safristas eram acomodados pela empresa terceirizada após o período de trabalho.

A Cooperativa Garibaldi, em nota, disse que desconhecia a situação relatada e que, diante do apurado, encerrou o contrato com a empresa para a prestação de serviço de descarregamento de caminhões, mas que “seguia todas as exigências contidas na legislação vigente”.

A cooperativa também afirmou que “reitera seu compromisso com o respeito aos direitos —tanto humanos quanto trabalhistas— e repudia qualquer conduta que possa ferir esses preceitos”.

A Salton, também em nota, disse que “a empresa não possui produção própria de uvas na serra gaúcha, salvo poucos vinhedos […] manejados por equipe própria”, mas que tinha contrato com sete trabalhadores da empresa em cada turno para o descarregamento de carga.

Diante do relatado pela imprensa, disse que “não compactua com essas práticas e se coloca à disposição dos órgãos competentes para colaborar com o processo”.

A Uvibra (União Brasileira de Vitivinicultura) também afirmou não tolerar, “sob nennhuma circunstância, as condições de trabalho e de habitação oferecidas por esta empresa prestadora de serviço”.

A entidade admitiu que, embora as vinícolas não fossem as empresas empregadoras, “existe amplo consentimento de que a cadeia vitivinícola deve ser mais vigilante e austera com relação à contratação de serviços terceirizados.” A Uvibra também se colocou à disposição para participar de um colegiado com autoridades e sindicatos para fiscalizar a questão dos serviços temporários.

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