O feitiço do Aquilombar 

No dia 16 de maio de 2024, quilombolas de todas as regiões do Brasil reuniram-se em Brasília para lembrar ao Estado brasileiro de sua existência e cobrar a efetivação de seus direitos.  A primeira versão do evento aconteceu em 2022, também em Brasília. Daquela vez eu não participei, agora, em 2024, vivenciei o tamanho da grandeza e resistência da população quilombola. Óbvio que nem todas as pessoas quilombolas estavam lá, mas estavam representadas por seus pares de todas as regiões brasileiras. Foi uma grande oportunidade de sentir a diversidade quilombola do Brasil! 

Naquela reunião, uma lembrança bem forte me chamou a atenção: o peso da luta dos meus avós, representado na força dos mais velhos ali presentes. Lutar para preservar o modo de viver com base no próprio sustento pelo trabalho da terra é uma das maiores formas de afrontar o sistema capitalista. E sabemos que muitos pagaram com a própria vida para sustentar esse direito.

Foi muita emoção! Chorei. Senti raiva, revolta.  Dor. Mas também alegria. Um misto de sentimentos que fizeram emergir uma energia que me impulsionou a gritar por justiça através dos cânticos e palavras entoadas. Sim, havia os cânticos espirituais, frutos da diversidade religiosa presente nas comunidades quilombolas. 

Aconteceu um encontro especial para mim no evento: conhecer o mestre Naldo, quilombola do estado do Piauí. Foram dois os momentos em que me senti enfeitiçada por ele: durante a entrevista que realizamos, e quando ele cantou no carro de som.  O cântico dizia: “Eu sinto a presença de Deus… É na luta, é na luta, é na luta”!  Fazendo-nos entender o respeito mútuo à fé alheia e que a luta é quem nos une na defesa do território e nos dá o motivo para estarmos unidos naquele encontro. Fazendo-nos sentir, com simples e profundas palavras, que o sentido de Deus é a justiça e o amor. O sentido de Deus também estava representado na opulência da diversidade cultural das comunidades quilombolas. O outro feitiço veio das palavras usadas para nos advertir sobre a forma pela qual temos conduzido as nossas vidas. Segundo ele, temos permitido que os modos e valores capitalistas ocupem um espaço de maior importância e nos sufoque, impedindo-nos de viver a vida, que passa tão rápido, mesmo diante da ambiguidade que essa questão nos coloca, pois, para viver essa vida de liberdade, precisamos que pessoas se disponham a abrir mão de estarem nas suas casas, com as suas famílias, em seus territórios, para trabalhar por todos nós. 

Lamentos, reivindicações e sugestões foram enviados aos companheiros e companheiras que estão no governo, também sufocados pelas urgentes demandas históricas da população quilombola e diante das limitações que parlamentares do campo da direita, extrema direita somados à burocracia do estado brasileiro, que ainda é muito racista, lhes impõe e impede de cumprir e efetivar todos os direitos necessários para que todas as pessoas quilombolas possam viver com dignidade. O senhor Naldo me fez lembrar de dona Rosa Geralda da Silveira, do quilombo da Caveira, em São Pedro da Aldeira/RJ, que compôs os seguintes versos: 

“Uma palavra de ordem:

nunca mais pagamos renda!

Morre a palavra patrão!

Todos juntos lutaremos

Por um pedaço de chão.

Nosso líder? Não temos líder!

Nosso líder é a liberdade!

Nossa bandeira é o chão!

Nosso ídolo é o trabalho,

Nosso símbolo, a união.”

Dessa forma, o feitiço do Aquilombar foi dirigido a mim, que vive a doença do capitalismo chamada de “ansiedade”. Naldo me fez entender melhor o sentido de Deus ao estar vivenciando aquele momento com minhas irmãs e irmãos de luta e memorizando toda a luta de nossos/as ancestrais por cidadania e dignidade. E, com toda essa energia através das palavras passando pelo corpo e fazendo o meu sangue ferver, chorei. Chorei pelos meus avós e bisavós expropriados e por todas/os aqueles cuja existência tem sido silenciada pela estrutura racista ao qual estamos inseridas/os. Nossa luta no presente é por vocês! Porque somos as suas continuidades e não permitiremos que tudo tenha sido em vão. 

Então, senti os meus bisavós bem próximos, representados nas senhoras que firmemente caminhavam em direção ao Planalto para juntas lembrarmos que estamos aqui e seguimos resistentes haja o que houver!


Da esquerda para direita: Ana Mumbuca, Rosiele Kalunga, Maria Páscoa, Senhor Naldo e Gessiane Nazario.

Gessiane Ambrosio Nazario

Quilombola da comunidade da Rasa. Pós-doutoranda em História Comparada pela UFRJ. Doutora em Educação pela UFRJ. Mestre em Sociologia pela UFF. Graduada em Pedagogia pela UFF. Co-fundadora do Coletivo de Educação da CONAQ. Coordenadora da Área Científica “Quilombos, territorialidades e saberes emancipatórios” da ABPN. Professora na rede Municipal em Armação dos Búzios. Autora do livro “Revolta do Cachimbo:a luta pela terra no Quilombo da Caveira”


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Sou Ana Paula, mulher negra, quilombola, Doutora em História e admitida para uma bolsa pós-doutorado no W.E.B Du Bois Research Institute em Harvard University....
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