Justiça brasileira não contabiliza casos de homotransfobia, cinco anos após criminalização

CNJ confirma falta de dados; para especialistas, Estado é omisso sobre o tema

STF (Supremo Tribunal Federal) criminalizou a homotransfobia há cinco anos, enquadrando o delito na lei do racismo —com pena de 2 a 5 anos de reclusão— até que o Congresso Nacional aprove uma legislação específica sobre o tema.

De lá para cá, nenhum caso do tipo foi contabilizado pela Justiça brasileira, porque não foi criado um assunto processual específico para a discriminação contra LGBTs. Nos autos, tudo é classificado como racismo.

A informação é do CNJ (Conselho Nacional de Justiça). O órgão não deu mais detalhes sobre a falta de detalhamento dos registros.

Enquanto isso, entidades têm tentado quantificar as ocorrências consultando ação por ação. Uma delas é o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, que noticiou o total de casos de homofobia punidos como racismo desde 2020.

Naquele ano, foram 111 casos registrados na Justiça. Em 2021, foram 328. Já em 2022, último ano com dados, foram 503. No período observado, houve aumento de 353% nas notificações.

Foi o advogado Paulo Iotti, de São Paulo, o responsável por defender punição pela lei do racismo nos casos de homofobia e transfobia perante o Supremo.

A ação havia sido levada à corte pela ABGLT (Associação Brasileira de Gays, Lésbicas e Transexuais) e o partido Cidadania. Para Iotti, a falta de assunto processual sobre homotransfobia após cinco anos demonstra a “má vontade, inépcia e incompetência inacreditáveis” do Judiciário.

À Folha, ele explica que a lei contra crimes raciais já prevê tipificações por cor, etnia, religião e procedência nacional. Por isso, não haveria barreira para incluir orientação ou identidade sexual.

Para Iotti, uma possível solução estaria nas polícias estaduais. “As secretarias de segurança pública poderiam instruir suas delegacias a tipificar a vítima e mapear esses dados nos boletins de ocorrência”, diz ele. “Se foi contra um gay, deixe, claro. Contra uma lésbica, também.”

São Paulo segue esse exemplo. Desde 2015, os boletins online e presenciais oferecem campo para colocar homofobia ou transfobia como provável motivação do crime, além de perfilar a orientação ou identidade sexual da vítima. Assim, é possível identificar os casos quando eles chegam aos tribunais.

Há, entretanto, outro problema quando se trata da atividade policial: a capacitação dos agentes.

Em 3 de fevereiro deste ano, o casal Rafael Gonzaga, 33, e Adrian Grasson, 32, sofreram um suposto caso de homofobia numa padaria na Santa Cecília, região central da capital paulista.

Às 4h daquele dia, eles decidiram parar no local para comer após uma festa. Ao tentarem estacionar o carro, havia uma pessoa sobre a vaga, identificada como a empresária Jaqueline Santos Ludovico, 35. Os homens pediram para ela sair, e ela teria respondido com ofensas, segundo registrado no boletim de ocorrência do caso.

A defesa da mulher, representada pelos advogados Adriana Sousa, Paulo Eduardo e Tiago de Mello, afirmou ser “exagerada e parcial” a forma como o caso é tratado e divulgado através da internet e dos meios de comunicação de massa.

O registro policial aponta que Ludovico teria empurrado o retrovisor do carro e desferido xingamentos com termos homofóbicos. Depois, ela teria atirado um cone no casal, segundo o relato de testemunhas à polícia.

Parte da ação foi gravada. Na filmagem é possível acompanhar a mulher dizendo ser “mais macho que os homens e que valores estão sendo invertidos. “Eu sou de família tradicional. Eu tenho educação”, ela grita em direção ao casal.

Chamada, a Polícia Militar liberou Ludovico, e não efetuou a prisão em flagrante. Um processo foi instaurado na corregedoria da corporação a fim de investigar a conduta. Ainda não houve conclusão.

O Ministério Público de São Paulo denunciou a empresária em maio por lesão corporal e injúria racial por homofobia.

“Enquanto a polícia não for capacitada adequadamente para lidar com crimes de ódio contra grupos minorizados, seguiremos com esse gargalo no processo de busca por justiça”, afirmou Gonzaga.

Após o episódio, ele e o marido buscaram auxílio na Decradi (Delegacia de Crimes Raciais e Delitos de Intolerância). Lá afirmam terem sido bem instruídos.

“O ideal é que toda delegacia fosse capacitada para acolher vítimas de crimes de racismo e homofobia, ou, pelo menos, que houvesse alguma política que aumentasse expressivamente o número de delegacias especializadas nesse tipo de crime pelo Brasil”, segue Gonzaga, hoje criador de conteúdo sobre direitos LGBTQIA+.

Ele relata ter sido seguido nas redes sociais por muita gente depois do caso, e passado a usar seus perfis para difundir informações, motivar e amparar outros na busca por justiça.

Os ministérios da Justiça e Direitos Humanos foram procurados para comentar a ausência de dados oficiais sobre casos de homofobia criminalizados no país. Nenhum deles respondeu.

Gustavo Coutinho, do Grupo de Advogados pela Diversidade Sexual e de Gênero, critica o que classifica como omissão do Estado.

“Apesar de termos muitas decisões judiciais sobre direitos homo e trans no Brasil, temos ainda uma baixa institucionalização desses direitos, principalmente pela ausência de lei específica e iniciativas por parte do Poder Executivo”, afirma ele.

Para Coutinho, são necessárias ações com a participação ampla do sistema Justiça, do governo e da sociedade civil para implementar mecanismos de coleta e organização de crimes contra a população LGBTQIA+ e, a partir disso, elaborar políticas públicas realmente efetivas para combatê-los.

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