O arquétipo do brasileiro de dupla cidadania

Maria Eugênia é professora de sociologia jurídica na Faculdade de Direito da UFMG

A maioria das pessoas requer título de dupla cidadania no Brasil muito mais para vencer aos procedimentos burocráticos nas fronteiras com outros países do que por convicção de sua histórica descendência genética.

por Márcio Fagundes

 

Quem chegou a esta conclusão foi a professora de Sociologia Jurídica da Faculdade de Direito da UFMG, Maria Eugênia Comini César. Ela defendeu tese de doutorado em Direito Internacional na Universidade de Urbino “Carlo Bo”, na Itália, denominada “O arquétipo do brasileiro de dupla cidadania”.

Seu trabalho mostrou que a dupla cidadania tem por objetivo primordial o desfrute das boas relações diplomáticas entre nações. Portanto, usufruir da livre circulação territorial. Por trás desta iniciativa, porém, existe também a tentativa de se livrar do peso de uma imagem negativa disseminada pelo mundo sobre os brasileiros, a partir da ótica colonialista, constatou a mestra.

O caráter do pedido de dupla cidadania traz em seu cerne a obtenção de um documento que facilite o livre trânsito do seu portador nas barreiras alfandegárias.

Entretanto, o rigor crescente para evitar a imigração ilegal no continente europeu, em especial por Portugal e Espanha, despertou a atenção da professora.

Muitos brasileiros foram vítimas de operações de deportação ainda nos aeroportos, bem como nos EUA. Parte deles, por preconceito. Por associação à prostituição e libertinagem. São os representantes de uma caricatura de permissividade, tão bem traduzidas nas figuras carnavalescas, que rodam o mundo. “É para fugir desse estereótipo negativo”, garantiu. Segundo ela, o passaporte estrangeiro adquiriu envergadura utilitarista para os brasileiros.

O documento concede ao portador uma viagem internacional sem entraves burocráticos, que variam do visto de entrada às filas nos aeroportos, e distante de preconceitos. A professora pesquisou 40 pessoas de variadas classes sociais e faixas etárias, cuja consangüinidade tivesse o DNA de antepassados originários da Itália. Entre elas, o culto a uma geografia pautada na hereditariedade provou-se quase inexistente. Metade deste universo tinha a documentação definitiva em mãos; a outra estava em procedimentos.

O contingente pesquisado foi pequeno por conta de resistência à exposição, mas teve apoio de entidades italianas. Apenas duas pessoas falavam o italiano. Os entrevistados consideraram a Itália superior ao Brasil em todos os sentidos. Poucas delas, no entanto, tinham conhecimento de Silvio Berlusconi, o polêmico empresário e ex-primeiro ministro italiano, assim como da realidade político-econômica daquele país.

O trabalho apontou, por exemplo, que 79% dos entrevistados pretendem permanecer no Brasil, a despeito da dupla nacionalidade. Uma maioria de 57% dos pesquisados não soube informar sequer de que cidade, província ou região vieram os descendentes. Duas delas manifestaram interesse em visitar apenas à Itália.

Uma maioria desejou incluir o país da bota em pacotes turísticos pelo Velho Continente. Europa e EUA foram destinos de 35% dos entrevistados, sem passagem pela Itália. A professora Maria Eugênia assistiu a mais de 200 filmes dos dois países. Ela rastreou a imagem do brasileiro a partir do descobrimento. Pero Vaz de Caminha, em famosa carta ao reinado português, lembrou que os colonizados “não encobrem suas vergonhas”.

Na literatura enveredou por “Casa Grande e Senzala”, de Gilberto Freyre. “A dupla cidadania ajuda a fugir deste estereótipo, faz com que as pessoas se sintam menos inferiores”, acrescentou. Ainda hoje, assegurou, os brasileiros são tomados por valores colonialistas, que atravessam todas as classes sociais. “O processo de descolonização político-econômico não foi seguido pelo de descolonização cultural”, ressaltou. Isso gerou certo complexo de inferioridade nos brasileiros com raízes outras no além-mar.

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