A ciência de ponta vai além das pessoas brancas

Enviado por / FonteEnviado ao Portal Geledés

Se não ampliarmos as políticas de inclusão, cientistas negros e indígenas de excelência seguirão sendo apagados e todos os candidatos continuarão parecidos

No final de 2022, assumimos um desafio com o qual sonhávamos há anos: lançamos uma chamada pública voltada exclusivamente a cientistas negros e indígenas, em parceria com a Faperj e com foco em ecologia. Nos propusemos a selecionar oito pós-docs. Recebemos 129 propostas, entrevistamos 28 candidatos e selecionamos 12. Outros tantos qualificados ficaram de fora.

Não é surpreendente que, desde a concepção da ideia até o final do processo, tenhamos ouvido diversos argumentos contrários: “As cotas na graduação já dão conta, basta esperar que os graduandos alcancem os lugares devidos.” “Não existem candidatos negros ou indígenas, com doutorado em ecologia, que pratiquem uma ciência de excelência.”

Mas, sim, essas pessoas existem – e são muitas. Investigam o crescimento de florestas em áreas de restauração, procuram integrar os saberes indígenas ao estudo do solo, buscam identificar novos fungos amazônicos. Seus nomes são Bede Ezewudo, Celina Cândida Ferreira Rodrigues, Daniela Boanares de Souza, Emanuelle Brito, Fabio Brito-Santos, Fatima Arcanjo, João Paulo Felizardo, Juliana Leal, Keltony de Aquino Ferreira, Rodolfo Leandro Nascimento Silva, Thamyres Sabrina Gonçalves e Victor Felix.

Formar um cientista, sabemos, é um empreendimento custoso e demorado. Ascender na ciência costuma exigir uma trajetória escolar impecável. Só que essa escolha limita a seleção de pessoas: todas acabam tendo o perfil parecido. A ciência perde. Os postos acabam ocupados por quem estudou na escola certa, mora no bairro certo, frequenta as rodas certas, e qualquer desvio desse caminho é penalizado.

A ciência de ponta vai além das pessoas brancas. Esse é precisamente o título do artigo que publiquei na Folha de S. Paulo na última quinta-feira, 19. Convido todos a lerem, também, os comentários ao texto, que deixam claro por que ainda temos um longo caminho a percorrer.

No site do Serrapilheira, publicamos uma versão estendida do artigo, para quem tiver interesse.

As seleções regulares por si só não dão conta de enfrentar de forma adequada o debate entre mérito e excelência. Para acelerar o processo de inclusão, defendemos a ampliação de chamadas exclusivas voltadas para grupos sub-representados na ciência. Sem esquecer que isso não nos isenta de ajustar as seleções tradicionais de forma a contemplar essas pessoas que seguiram trajetórias diversas das esperadas. Sem essas mudanças, cientistas negros e indígenas de excelência seguirão sendo excluídos do fazer científico, e a sociedade será privada de todo o conhecimento que eles têm a agregar.

Helio Santos, professor e doutor em Administração, presidente do Conselho da Oxfam Brasil e um dos precursores na discussão sobre ações afirmativas no Brasil, durante o Encontros Serrapilheira em Tibau do Sul/RN. (Foto: Elisa Elsie)

“Como a ciência dialoga com o país mais desigual do mundo?”, questionou Helio Santos no Encontros Serrapilheira, evento que reuniu nossos grantees de ciência e de jornalismo e mídia em Tibau do Sul/RN, na última semana. “Não se promove diversidade, em seu sentido amplo, sem equidade. A igualdade de oportunidades é a matriz que leva ao verdadeiro desenvolvimento. Diversidade não é benevolência ou política do coitadinho.”

Helio Santos nos apresentou o conceito de sustentabilidade moral, que implica fazer com que oportunidades não constituam um privilégio. “Ninguém pode impunemente desperdiçar talentos. Quem fica sem interagir com ideias diferentes das suas está condenado à pior das pobrezas, porque vai ficar sozinho.”

Nosso desejo é que, o quanto antes, a ciência possa representar o “Brasil de carne e osso” que defende Helio Santos: uma ciência que não hierarquize pesquisadores e exclua talentos pelo seu tom de pele, sua origem ou sua trajetória.

+ sobre o tema

Chris Rock fez no Oscar o que todos esperavam e alguns temiam

Entre uma investigação jornalística sobre abusos sexuais na Igreja...

Keeanga-Yamahtta Taylor reflete sobre a força que vem do ativismo negro

As eleições que levaram a afro-americana Kamala Devi Harris...

Buffon faz coro a Boateng contra o racismo: ‘Deve ser extirpado’

Capitão da seleção italiana, Buffon afirma que discriminação é...

para lembrar

A história oficial exclui os negros da construção do país, denuncia Cláudia Durans

A afirmação é de Cláudia Durans , professora-adjunta do...

Comitiva do movimento negro brasileiro vai à posse de Boric no Chile

Uma comitiva formada por organizações do movimento negro brasileiro está a...

Um disco que vai além de ‘quebrar’ a internet

Reflexões sobre a importância social e musical do estrondoso...

Denuncie crimes federais praticados na internet como racismo e pedofilia

Ministério Público Federal em SP criou canal para facilitar...
spot_imgspot_img

Em Portugal, ministra Anielle Franco fortalece cooperação bilateral para igualdade racial e combate à intolerância

A ministra da igualdade racial, Anielle Franco, iniciou sua agenda oficial em Portugal, nessa terça-feira (25), com a missão de fortalecer as cooperações entre...

Advogada presa por injúria racial em aeroporto é liberada da prisão cerca de 24 horas depois do crime

Veja o vídeo A advogada, de 39 anos, presa no Aeroporto Internacional de Belo Horizonte, em Confins, na Grande BH, suspeita de injúria racial contra um gerente operacional...

Homem branco privilegiado (não) é o centro do universo?

Nosso sistema educacional foi estruturado de maneira a favorecer as contribuições dos europeus e seus descendentes. A influência dos colonizadores é evidente nos currículos escolares, onde suas...
-+=