A cultura do estupro gritando – e ninguém ouve

Como a essa altura vocês já devem saber, Gerald Thomas tentou colocar as mãos por dentro do vestido da Nicole Bahls durante um evento no Rio. Era noite de lançamento de um livro dele e a Livraria da Travessa estava lotada. Repórteres, cinegrafistas, funcionários da loja, clientes.

Por Nádia Lapa

Pelas notícias, ninguém fez nada. Nas imagens dá para ver que o colega de trabalho de Nicole no Pânico continuou a entrevista como se nada tivesse acontecendo. Enquanto isso, Thomas enfiava a mão entre as pernas de Nicole e ela tentava se desvencilhar.

Sempre rolam os xingamentos à mulher, claro. São os usuais: que ela estava pedindo, que ela estava gostando, que o trabalho dela é esse mesmo, que a roupa era justa. Vocês estão cansados de saber quais as justificativas injustificáveis para o assédio e a agressão sexual.

Mas duas coisas me chamam a atenção nesse caso. A primeira é ninguém ter feito nada. Acharemnormal. Acharem aceitável. Se a agressão tivesse sido com uma atriz considerada recatada, as pessoas reagiriam da mesma forma?

Duvido. Indignar-se-iam, aposto. Muita gente nas redes sociais se posicionou e apontou o comportamento de Gerald Thomas como agressão, mas a imprensa tratou como algo que “Nicole não esperava”, mostrando o assunto como mero constrangimento.

Se a mulher geralmente já é tratada como “coisa”, como um objeto para deleite masculino, quando ela tem seu corpo e sua sexualidade transformada em um produto vendável, tudo só piora. Nicole faz sucesso porque tem um corpão, segundo os padrões de beleza atuais. Ela aparece de biquini na televisão, tira fotos “sensuais”, usa roupas curtas e provocantes. Como ela “provocou” (apenas sendo quem ela é), ela merece ser apalpada por um estranho.

Porém, não existe isso de “provocar”. Gerald Thomas não é um animal irracional. Ele – e eu e você – deve esperar o consentimento do outro para poder tocar em seu corpo. Nicole Bahls claramente disse “não”, ao tentar tirar as mãos de Thomas. Parece que não é suficiente, como não é suficiente quando viramos o rosto para evitar o beijo do desconhecido na balada.

Criou-se a ideia de que o homem deve insistir e insistir, enquanto a mulher tenta guardar algo. O “não” é visto como “talvez”. No entanto, se a mulher transforma o talvez em um “deixa pra lá”, ela na verdade não está consentindo. Não é um “sim” entusiasmado, intenso, certeiro, como deve ser em qualquer relação. É um “sim” por convenção social, por achar que ele já fez demais, que agora merece o contato sexual, que é melhor ceder e se livrar logo. Isso não é consentimento, é coerção.

O pior é que esses caras não se veem como agressores, uma vez que todo mundo encara tais comportamentos como “normais”. Brad Perry tem uma frase ótima em Yes Means Yes*: “estes homens acreditam piamente que “não” significa “insista”, e nunca se veem como estupradores, apesar de admitirem o padrão de ignorar e suprimir a resistência verbal e física”.

A segunda coisa que me incomoda no caso é terem dito “mas por que ela não fez algo?”. Infelizmente, a maior parte das pessoas que sofre algum tipo de agressão (não só sexual) não faz alguma coisa. Ser vítima é costumeiramente confundido com “ser frágil”. É difícil encarar polícia, legista, imprensa, opinião pública. No caso desse post, o cara estava agredindo na frente de todos – e ninguém fez nada.

Se fosse você a vítima, você não pensaria que a errada é você por não estar gostando, já que todo mundo está achando muito normal?

Lisa Jervis discorre sobre isso no mesmo livro: “estou falando de uma construção cultural nojenta, destrutiva, que encoraja as mulheres a culparem a vítima, a se odiarem, a se culparem, a se responsabilizarem pelo comportamento criminoso dos outros, a temerem seus próprios desejos e a desconfiarem dos seus próprios instintos”.

Se o corpo da mulher é ainda visto como “de todos”, como acontece no caso daquelas que usam a sexualidade para “vender”, fica ainda mais difícil ter noção de que o corpo lhes pertence. Que é só seu. Que ninguém, ninguém pode tocá-lo sem consentimento.

Acabarmos com a cultura do estupro é um processo social, coletivo, mas também individual. Nós temos que encarar nossos corpos como nossos e de mais ninguém, além de repensarmos o sexo, transformando-o no que realmente é: prazeroso e consensual. Qualquer coisa fora disso é agressão.

(PS: Yes Means Yes é um livro de Jessica Valenti e Jaclyn Friedman sobre a cultura do estupro. É uma coletânea de artigos muito interessante e que recomendo muito. O texto de Brad Perry se chama Hooking up with healthy sexuality: the lessons boys learn (and don’t learn) about sexuality, and why a sex-positive prevention paradigm can benefit everyone involved.)

Fonte: Carta Capital

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