A ‘desfavelização’ e o ódio da elite às periferias perpetuam herança colonial

Prefeitura de Duque de Caxias reproduz lógica colonialista que marginaliza moradores de favela

“Moro na Favela do Lixão há mais de 30 anos. Quando cheguei, a capineira tinha só quatro casas. Aqui tive e criei três filhos sozinha, construí minha casa com muita luta e suor, perdi meus pais, uma filha que me deixou um neto autista para criar, e uma irmã. Tudo que sei e que fiz da vida, foi daqui.”

É assim que a líder comunitária Rocicler Thomaz Fortes, mais conhecida como Dona Rose, começa a falar de suas lembranças na favela Parque Vila Nova, popularmente conhecida como Favela do Lixão.

Localizada no centro da cidade de Duque de Caxias, região metropolitana do Rio de Janeiro, o território tem se consolidado como um polo da luta por moradia na cidade.

Não por coincidência, é hoje palco de um dos maiores experimentos referentes à política de habitação no país. “O Maior Projeto de ‘desfavelização’ do Brasil” é como o governo de Caxias anuncia o programa que está removendo mais de 4 mil famílias de suas casas, tendo como justificativa a reurbanização da área.

Favela de Paraisópolis, na Zona Sul de São Paulo, e prédios vizinhos luxuosos à direita escancaram desigualdade em SP – Inês Bonduki-03.mar.21/Uol

A ação, que conta também com incentivo federal e estadual, reproduz conceitos ultrapassados que perpetuam a estagnação de um plano político elitista, classista e racista, que nos remete à reforma urbana na cidade do Rio de Janeiro no início do século passado, conhecida como “Bota-Abaixo”.

Ela expulsou a população vulnerabilizada de suas habitações, os cortiços, através de ações higienistas, iniciando o processo de favelização dos morros próximos ao centro da cidade.

Precisamos lembrar que as políticas nacionais de habitação e desenvolvimento urbano sofreram, como tantas outras, um profundo vácuo de investimento, especialmente nos últimos quatro anos.

Essa fragilidade federal que se estendeu ao campo político gerou desdobramentos e alargamento das desigualdades nos estados e municípios de todo o país.

O déficit habitacional no Brasil —que é a falta de moradia ou a existência de habitações em condições precárias— é de 5,8 milhões de domicílios, de acordo com levantamento de 2019 da Fundação João Pinheiro.

No Rio de Janeiro, esse déficit é de 476 mil casas, sendo 331 mil destas na Região Metropolitana. Um problema social dessa magnitude e urgência não se resolverá a curto prazo e nem com modelos obsoletos de intervenção.

A aversão aos espaços periféricos e o fim das favelas é um sentimento antigo dos detentores do poder econômico e político do Brasil.

Não estamos falando de ações para o fim da pobreza ou da violência nessas localidades, mas da destruição dos próprios territórios enquanto comunidades, já que, sob pilares de resistência, neles têm surgido um levante de organização e força política com os quais a hegemonia não quer se arriscar a lidar.

Moradores do Jardim Gramacho, em Duque de Caxias (RJ), onde funcionou o maior lixão da América Latina, assistem o jogo da Copa do mundo entre Brasil e Croácia, que resultou na eliminação da Seleção Brasileira – Tércio Teixeira-09.dez.22/Folhapress

A proposta de “desfavelização” é uma ameaça concreta em vigor contra a existência e a história das favelas de todo o país, afetando profundamente a vida de milhões de brasileiros, cultural, social e economicamente.

Destruir o que existe para construir algo novo sob os parâmetros da elite perpetua um retrato colonialista que assistimos como a uma série com inúmeras temporadas parecidas. Não há sentido em despejar pessoas de suas casas para construir outras no lugar.

Posturas verticais e autoritárias na condução das políticas afetam a relação do Estado com 17,9 milhões de pessoas que vivem em favelas em todo o Brasil, conforme pesquisa Data Favela 2023.

Desconsiderar a participação dessas pessoas nos processos de construção social que as envolvem é fadar os mesmos ao fracasso desperdiçando dinheiro público, como tem acontecido há décadas no Brasil.

Professor do departamento de serviço social da PUC-Rio, Rafael Soares Gonçalves, que debate acerca de casos como este, critica a ação da prefeitura de Duque de Caxias.

“Parece que voltamos à década de 1960. Esse tipo de intervenção é política pública para quem? Esse tipo de projeto precisa considerar o estatuto das cidades e a participação popular”, afirma.

De acordo com a pesquisa Data Favela, o potencial de consumo das favelas no Brasil é de quase R$ 10 bilhões por ano. Ainda segundo o levantamento, cerca de 50% dos favelados empreendem em suas localidades e cidades.

Esperamos que o Estado compreenda as favelas a partir dessa potencialidade de desenvolvimento cultural, social e econômico, e da incidência disso nas cidades e estados.

No dia 13 de julho, o governo federal lançou o novo Minha Casa, Minha Vida, colocando como prioritário o papel e a participação das periferias para o desenvolvimento do Brasil.

No entanto, considerar esses espaços importantes para o país vai na contramão de projetos higienistas como o da “desfavelização”.

O programa Minha Casa, Minha Vida do atual governo tem capacidade para zerar o déficit habitacional no Brasil de forma linear, coerente e sem despejos, valorizando as favelas.

Uma relação horizontal, ampla e transversal do poder público com as favelas que fortaleça a construção de instrumentos de vida onde rotineiramente se impõe a violência e o apagamento é um caminho consistente para a superação das desigualdades estruturais desse país.

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