A história do racismo no futebol brasileiro

Por Julio Ribeiro Xavier

O Negro no Futebol Brasileiro, de Mario Filho, 342 pp., Editora Mauad X, 1947



Em tempo de Copa do Mundo, tendo o Brasil como país-sede em 2014, é sempre bom lembrar a trajetória da nossa “paixão nacional”. E ninguém melhor do que o jornalista e escritor Mario Filho para abordar o assunto. Mario Filho nasceu em Pernambuco, viveu no Rio e trabalhou nos jornais A Manhã, A Crítica e O Globo. Depois dirigiu o Jornal dos Sports até a sua morte, em 1966. A prática de racismo no futebol não é uma novidade no Brasil. Mario Filho tratou do assunto em 1947. Com O Negro no Futebol Brasileiro, livro publicado em 1947, o jornalista abordou um assunto incômodo para a época: o lento e doloroso ingresso de negros e mulatos no futebol brasileiro. Afinal de contas, até pouco tempo, nossa sociedade pregava aqui e no exterior que a nossa democracia racial era um exemplo para o mundo de convivência harmoniosa entre negros e brancos.

Nos primórdios, no nosso “esporte nacional”, ainda não era comum jogar banana ou xingar um jogador negro de “macaco” nos campos de futebol. Naquela época, futebol era coisa de branco e rico. Introduzido no Brasil pelos ingleses que aqui chegaram, no futebol não se admitia mulato ou negro nos campos, e nas aquibancadas eram raridade. Era o Brasil onde o futebol tinha um sentido aristocrático. Era “coisa de bacana”.

Com a vitória da equipe brasileira no Campeonato Sul-Americano em 1919, a imprensa e alguns escritores, como Coelho Neto, passaram a dar grande destaque ao futebol, que entrou no gosto do povo. Em 1921, o então presidente Epitácio Pessoa “recomendou” que o Brasil não levasse jogadores negros à Argentina, onde se realizaria o Sul-Americano daquele ano. Era preciso, segundo ele, projetar no exterior uma “outra imagem” nossa, composta “pelo melhor de nossa sociedade”.

Cínico e hipócrita

Era a política do Estado brasileiro, em relação àsua população negra, alcançando o futebol. O primeiro herói mulato do futebol brasileiro foi um atacante de cabelos crespos, filho de pai alemão e mãe negra. Friedenreich, do Paulistano (SP), se tornou ídolo em 1919, depois de fazer um gol contra o Uruguai. “O povo descobria, de repente, que o futebol deveria ser de todas as cores, futebol sem classe, tudo misturado, bem brasileiro,” escreveu Mario Filho.

O livro aborda a inovação da equipe de futebol do Clube Vasco da Gama, do Rio de Janeiro, que era oriundo da Segunda Divisão e que, utilizando um time formado por brancos, negros e mulatos, conquistou o título da Primeira Divisão do campeonato carioca enfrentando equipes formadas apenas por brancos. Mas Mario Filho lembra um comentário de um dirigente vascaíno da época: “Entre um preto e um branco, os dois jogando a mesma coisa, o Vasco fica com o branco. O preto é para a necessidade, para ajudar o Vasco a vencer.”

Mario Filho foi mais além ao lembrar o torneio do Natal entre as equipes de futebol do Rio de Janeiro e São Paulo. No dia 25 de dezembro de 1916, paulistas e cariocas disputaram um jogo de seleções em São Paulo. Como muitos brancos se recusaram a jogar no Natal, os cariocas completaram o time com negros e mulatos. No campo, uma derrota: 9 a 1. Após o jogo, os cariocas afirmaram que a seleção não representava o verdadeiro Rio. “A real possuía família e jamais deixaria seus parentes solitários numa noite de Natal. Só negros e mulatos eram capazes de agir dessa forma.”

Ao escrever um livro dedicado a abordar a trajetória dos negros e mulatos no futebol brasileiro, Mario Filho conhecia bem o campo em que estava pisando. O campo do racismo cínico e hipócrita que persiste até os dias de hoje e que faz muitos estragos não só nos gramados, mas em toda a estrutura da nossa sociedade.

 

 

Fonte: Observatório da Imprensa

+ sobre o tema

Nossa cumplicidade dissimulada com o racismo

Como ficou claramente comprovado no episódio e nas repercussões...

A hora da reação nacional contra um Estado genocida

As conclusões do jurista Luiz Flávio Gomes são da...

Teste de preconceito nas redes sociais

Museu Memória e Tolerância criou 2 perfis masculinos e...

para lembrar

Estudo da UE aponta disseminação de racismo e xenofobia no continente

Fonte: Deutsche Welle Racismo e xenofobia estão mais presentes na...

Seminário Identificação e Abordagem do Racismo e do Sexismo Institucionais Brasilia, 10 e 11 de maio

Evento ocorre no âmbito do seminário "Identificação e Abordagem...

Austrália propõe mudar lei, mas aborígenes querem mudança real

Por: Liz Lacerda Alison Golding tinha 10 anos...

Grupo Carrefour rejeita recomendação do Ministério Público do Trabalho após caso de racismo

O Ministério Público do Trabalho (MPT) propôs ao Hipermercado...
spot_imgspot_img

Cidinha da Silva fala de ‘relações raciais’ no Brasil através de textos reflexivos

Virou moda falar por aí na palavra "antirracismo". No Brasil, o ruim de tudo que cai na moda é a sua perda de significado e,...

Julho das Pretas e o protagonismo das mulheres negras

No início deste mês que chamamos de "Julho das Pretas", destaco Beatriz Nascimento, um ícone do movimento de mulheres negras, que publicou seu primeiro artigo...

Até um dia, Roya. Rest in power, minha irmã

"Tudo o que sei sobre a dificuldade de sustentar a democracia no Brasil é tão parecido com o que enfrentamos no Sudão", disse Roya...
-+=