A loucura nos salva da lucidez.

Por: Arisia Barros

O louco da cidade

E se eu fosse o louco da cidade? Sim, e por que não? Todas as cidades, no mundo inteiro, têm os seus loucos. Eles servem para que as outras pessoas, ao vê-los, se sintam normais e resgatem a autoestima que imaginavam não mais ter. Assim, para que uma cidade seja sã precisa ter o seu louco.

Só há vantagens no projeto: é o ganha-ganha. Aliás, eu só não sei por que a loucura privilegia tão poucos.

Eu poderia dormir na praça, em meio aos cães, todos em volta, carentes que são do carinho humano. Adoráveis tolos! Nas noites de frio, os seus pelos me serviriam de manta. Quando fosse temporada de calor, com esperteza, lhes faria um agrado e eles abanariam os rabos – pequenos e delicados ventiladores.

Esqueceria para sempre todas as regras da etiqueta. Comeria com os dedos, fazendo bolinhos com o bem-mole que me dariam, tomaria água com as mãos em concha, como quando era moleque a me espalhar e sumir no oco do mundo: “Você é doido, menino.” Pois é, de repente poderia ter dado certo, mas eu reneguei o vaticínio. Por algum tempo, como bem se vê.

A garotada, ao passar de volta da escola, zombaria de mim, faria algazarra, eu correria atrás da tropa a jogar pedra – todo louco joga pedra –, num ritual que se repetiria de segunda à sexta. Nos finais de semana, descansaria. Essa é a lei dos homens respeitada até mesmo pelos loucos.

E se as moças bonitas andassem por ali não me veriam, mas eu voltaria os olhos para elas, de esguelha, dissimulado. Não as teria nos braços, é certo, mas quem há de saber o que vai na cabeça de um louco? De repente, ele vive uma realidade que para nós, do lado de cá da fronteira, é apenas um sonho.

Seria ignorado pelos homens importantes, engravatados e solenes, que nem ao menos dirigiriam a mim um gesto de desprezo, de nojo ou algo assim. Seria visto, porém, pelos pequeninos melequentos nos braços das mães, olhares espantados em evidente perplexidade ao se depararem com aquele ser estranho coberto de trapos e com postura majestosa.

Os mais velhos sabem que a loucura não é contagiosa: “Não pega”, garantiriam do alto da sua autoridade adquirida. Mas haveria sempre uma balzaquiana a passar pela praça, as ancas em expansão, os peitos querendo romper a sufocante prisão. Ela? Fingindo medos em gritinhos quase sussurros, audíveis o suficiente para que o garanhão ao derredor lhe oferecesse segurança e lhe fizesse a corte. Retornaria para casa feliz em saber que foi desejada por um curto momento que fosse.

E o melhor de tudo eu deixo para o final: estaria livre da loucura ao sentir as dores e misérias dos homens.

 

 

Fonte: Cada Minuto 

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