Ação afirmativa no Brasil, política virtuosa no século 21

Iniciativas dedicadas a maximizar o bem-estar social

FONTEFolha de São Paulo, por Jacques d’Adesky
É doutor em ciência social pela USP, pós-doutor em história comparada pela UFRJ. É vice-presidente científico do Centro Internacional Joseph Ki-Zerbo para a África e sua Diáspora (CIJKAD). - Divulgação

As políticas públicas de ação afirmativa tiveram seu marco inicial no Brasil em 2001, quando o governador do Rio de Janeiro Anthony Garotinho sancionou a Lei nº 3708, instituindo o sistema de cotas raciais para admissão na Uerj (Universidade do Estado do Rio de Janeiro) e na UENF (Universidade Estadual do Norte Fluminense).

No ano seguinte foi a vez do presidente Fernando Henrique Cardoso instituir um Programa de Ação Afirmativa que estabeleceu, entre outros, cotas no Ministério da Justiça nos contratos de prestação de serviços de terceiros tendo a participação de no mínimo 20% de afrodescendentes, assim como no Ministério das Relações Exteriores, o Programa Bolsa-Prêmio de Vocação para a Diplomacia com o objetivo “propiciar maior igualdade de oportunidade e diversidade étnica na preparação ao concurso do Instituto Rio Branco, por meio de apoio a candidatos afrodescendentes”.

Esses primeiros passos foram o sinal que propiciou o estabelecimento das cotas na UNB (Universidade de Brasília), deflagrando políticas semelhantes em todo o território brasileiro, incluindo, em 2005, o Programa Universidade para Todos (ProUni), que concede bolsas de estudos a alunos de baixa renda, afrodescendentes e indígenas.

Entretanto, quase duas décadas antes dessas conquistas as sementes para um despertar da consciência já vinham sendo plantadas por intelectuais negros que se empenhavam em propor medidas de ação afirmativa.

Em 1983, o então deputado federal Abdias do Nascimento apresentou um projeto de lei estabelecendo representatividade de 20% de afrodescendentes nos seus respectivos quadros de servidores na administração pública direta e indireta, que nunca foi apreciado nem debatido pelo Congresso.

Em 1991, um grupo formado pelo jornalista e historiador Carlos Alberto Medeiros, o advogado Hédio Silva Jr., o economista Hélio Santos e o Frei David Raimundo Santos realizou na Prefeitura de São Paulo o “Seminário: Políticas Públicas e Ação Afirmativa”, com o objetivo de propor medidas no sentido de promover o acesso da população afrodescendente ao ensino superior.

Por meio de artigos em revistas acadêmicas e veículos da grande imprensa, essa militância apresentava teorias da maximização do bem-estar social e citava as experiências internacionais de outros países que já haviam adotado aquele modo de gestão.

Um desses exemplos foi a Índia, que depois da sua independência em 1947, deu prioridade de acesso ao emprego público e ao ensino superior aos “intocáveis” (dalits), às castas e tribos catalogadas, assim como às outras classes atrasadas (backward classes), ampliando as políticas aplicadas pelos britânicos a partir do fim do século 19 objetivando promover a igualdade de oportunidades para os segmentos da sociedade indiana em situação de marginalidade, como foi o caso dos “intocáveis”, muçulmanos e cristãos.

Apesar do posicionamento contra as medidas de ação afirmativa brasileira por parte de numerosos intelectuais e universitários que acreditavam que a implementação de tais políticas, poderia acirrar as divisões “raciais”, como também deteriorar a qualidade do ensino superior, já são evidentes os progressos alcançados com a expansão da diversidade étnico-racial dos alunos nos campi universitários, em maior consonância com a realidade populacional do país.

Segundo o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Anísio Teixeira (Inep), 40.661 alunos cursaram em 2012 a graduação mediante às ações afirmativas, enquanto foram 108.616 em 2022, seja um crescimento de 167%.

Esses dados já configuram um resultado virtuoso que pode ser festejado não somente pelos beneficiários e por aqueles intelectuais e políticos que conceberam e defenderam essas ações, mas também pelo país inteiro.

Tal política que vislumbra alcançar a maximização de bem-estar social, lembra o preceito filosófico africano, do “ubuntu” (eu sou porque nós somos), noção, posta em voga por Nelson Mandela, fundamentada na essência social do indivíduo, privilegiando o bem comum e o respeito da humanidade do outro.

Entretanto, para coroar, este resultado que fomenta maior “capabilidade” à uma vida digna, bem como ao desenvolvimento de todas as comunidades no país, é imprescindível para comparação e aprimorar a política de ação afirmativa, ter acesso às estatísticas do número de médicos, engenheiros, biólogos, arquitetos, formados nessas duas décadas.


Jacques d’Adesky

É doutor em ciência social pela USP, pós-doutor em história comparada pela UFRJ e vice-presidente científico do Centro Internacional Joseph Ki-Zerbo para a África e sua Diáspora


O editor, Michael França, pede para que cada participante do espaço “Políticas e Justiça” da Folha sugira uma música aos leitores. Nesse texto, a escolhida por Jacques d’Adesky foi “Hallelujah”, interpretada por Alexandra Burke.

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