Afinal, para que serve a família?

Como praticamente todos os leitores já devem saber, está acontecendo na internet uma enquete no Site da Câmara dos deputados sobre o que a população entende como família. A pergunta da enquete é bem direta, “Você concorda com a definição de família como núcleo formado a partir da união entre homem e mulher, prevista no projeto que cria o Estatuto da Família?” e quando redigi esse texto, contava com mais de quatro milhões de votos, sendo aproximadamente 52% deles contra essa definição, que exclui não apenas casais homoafetivos, mas também pais e mães solteiros. O conceito de família do Estatuto não é apenas discriminatório contra a população homoafetiva, é retrógrado a ponto de ser contra o divórcio.

Por:  no, Brasil Post 

Mas afinal de contas, para que serve a ideia de família? Uma primeira resposta é apontar como o instituto da família tem uma função – na nossa sociedade – de reproduzir a própria sociedade. Isso é mais ou menos tornado claro por regras de direito de família, como obrigações parentais, heranças, formas de casamento e divórcio. No entanto, gostaria de argumentar, achar que só sobrevivemos “por causa da família” é ingênuo, é não perceber como muitas outras formas de interação humana são relevantes para dar sentido a nossas próprias vidas.

Notem que o parágrafo anterior trabalha com o conceito “padrão” de família, o conceito do projeto do Estatuto da Família (aliás, parêntese jurídico: nem mesmo o direito de família considera ser família só o núcleo homem-mulher, ou seja, o Estatuto é um retrocesso jurídico). A ideia de família como união homem-mulher não tem mais a primazia de que gozava no passado na sociedade, nas formas com as quais nos relacionamos uns com os outros. É – a meu ver – uma ideia anacrônica que nega a pluralidade humana em formas de se viver.

Meu argumento central: laurear certa relação humana com proteção a mais, meramente por ser tradicional, não faz sentido algum em um Estado que se pretenda democrático, plural e laico. É possível inclusive argumentar que a concepção tradicional de família é meramente contingencial: sociedades diferentes em momentos diferentes apresentam modos familiares diversos. Por que achar que um deles merece proteção a mais no Brasil? Tendo isso em vista, estamos em um ponto no qual podemos fazer duas coisas, como explico abaixo.

A primeira possibilidade que temos é expandir o conceito de família para englobar mais formas de relacionamentos humanos, como o direito de família lentamente tem feito ao considerar famílias compostas por pais solteiros ou, mais recentemente, a expansão desse ramo do direito para proteger uniões homoafetivas. A segunda possibilidade é questionar qual é – afinal – a utilidade do conceito de família, principalmente em relação à proteção concedida pelo Estado. Quando expandimos a proteção dada à família para alguns grupos, outros continuam excluídos. Por exemplo, continua nas margens do direito a situação de relações poligâmicas. Isso significa dizer que sem uma problematização e um questionamento sincero do papel que a ideia de família desempenha na sociedade, vamos continuar a oprimir determinadas pessoas, mesmo quando garantimos direitos a outras [1].

As duas possibilidades, ressalto, não são mutuamente excludentes. Podemos estrategicamente adotar a primeira, visando com isso garantir imediatamente uma proteção a grupos minoritários que sofrem riscos de perder seus direitos nas mãos de eventuais grupos opressores. Ao mesmo tempo, podemos adotar a segunda possibilidade, nos questionando qual é a função que o conceito de família exerce na sociedade, de maneira mais ampla. Em outras palavras, podemos e devemos – se formos sinceros com os ideais do Estado Democrático de Direito – nos posicionar contra a definição do Estatuto da Família, mas também temos a obrigação de nos perguntar qual papel exercem nossos conceitos enquanto formas de opressão.

[1] Esse ponto é constantemente destacado por acadêmicos e militantes feministas e LGBTTT, por exemplo. Não faço uso de nenhuma teoria específica nesse artigo, apenas da ideia geral.

+ sobre o tema

AGU e Ministério da Igualdade Racial realizam aula inaugural do programa Esperança Garcia

A Advocacia-Geral da União (AGU), em parceria com o...

Operação resgata 12 pessoas em condições análogas à escravidão

A Polícia Federal (PF), em parceria com o Ministério...

A saga de uma Nobel de Economia pelo ‘Pix do desastre climático’

Mesmo com seu Nobel de Economia conquistado em 2019,...

para lembrar

Oprah diz que fim do seu programa parece a coisa certa

CHICAGO (Reuters) - Oprah Winfrey disse que vai encerrar...

Todo dia é dia

ONU escolheu o 20 de março como a data...

Estatuto: A vontade da Casa Grande

Brasília - Ignorando o apelo de mais de...

Detenção de Mano Brown exemplifica a mensagem de Cores e Valores

Pedro Paulo Soares Pereira, 44 anos, também conhecido como...

Vitória da extrema direita na França afetará guerras, Mercosul e clima

Uma vitória da extrema direita ameaça gerar um profundo impacto na política externa da França --a segunda maior economia da Europa-- com repercussão na...

Extrema direita francesa choca com slogan: ‘Dar futuro às crianças brancas’

O avanço da extrema direita na França abre caminho para campanhas cada vez mais explícitas em seu tom xenófobo. Nesta semana, um dos grupos...

Supremocracia desafiada

Temos testemunhado uma crescente tensão entre o Poder Legislativo e o Supremo Tribunal Federal. Essa tensão não decorre, no entanto, apenas do ressentimento de...
-+=