Aos negros, o final da fila: um panorama da desigualdade na capital gaúcha

Dona Marlene Alexandre da Silva, 68 anos, aposentada, ainda não encontrou a tranquilidade da terceira idade. Moradora da Vila Cruzeiro, mulher negra e mãe de sete filhos, ela questiona as oportunidades dadas à ela e a sua família. De sete adultos, cinco estão desempregados. A procura por trabalho é diária, a frustração e o desespero, também. O que fazer quando suas condições sociais, sua escolaridade e seu futuro estão ligados a sua cor de pele?

Por Rebeca Kuhn, do Sul 21 

Larinha conta que, em entrevistas coletivas, o racismo fica mais evidente. Foto: Rebeca Kuhn

A desigualdade racial está presente em todas as esferas da sociedade, em todo o Brasil, em todos os segmentos. O que parece contraditório, já que vivemos em um país construído por negros e vivido por eles. Atualmente, segundo o IBGE, 53% dos brasileiros se declaram pardos ou negros. A injustiça sofrida por eles, mesmo que não exibida nos noticiários, é facilmente percebida: quantos negros você vê na política? Quantos em uma grande empresa ou universidade? E na cidade, quantos você enxerga em situações precárias na rua? Quantos se encontram na fila do seguro-desemprego?

Hilária Alexandre da Silva, 36 anos, filha da Dona Marlene, sempre gostou de trabalhar como recepcionista. Trabalhar com o público, atender chamadas e ganhar um salário era um cotidiano não só prazeroso, como necessário. Há três anos esse dia a dia tornou-se diferente, “Minha rotina é ficar em casa e sair para procurar emprego” desabafa Larinha, como prefere ser chamada. Toda semana o telefone toca. Sempre uma convocação para uma nova entrevista. A expectativa alimenta seus sonhos, que logo são diminuídos com o silêncio. Segundo Larinha, “retornaremos em breve” é a frase mais dita pelos contratantes, mas nunca cumprida.

Ela não tem dúvidas de que sua cor interfere na hora de conseguir um emprego. Já sofreu preconceito direto e camuflado em entrevistas.

Larinha conta que, em entrevistas coletivas, o racismo fica mais evidente: “Quando estamos em grupo percebo o olhar e perguntas diferentes a mim”.

A diferença entre a taxa de desemprego do negro e do não-negro sempre foi grande. Embora tenha cada vez mais políticas afirmativas no país, que promovem recursos em benefício de pessoas pertencentes a grupos discriminados e vitimados pela exclusão social, a relação de desemprego entre brancos e negros em Porto Alegre foi a pior de toda série histórica registrada pelo PED-RMPA (Pesquisa de Emprego e Desemprego na Região Metropolitana de Porto Alegre). Ou seja, é o índice mais negativo desde 1993.

Com o sonho de cursar faculdade de administração e casar com seu noivo, Larinha lamenta a dívida do Brasil com o negro. Enquanto prepara cupckaes para vender na vizinhança, ela observa que, apesar da atual crise, empregos não faltam. Para ela, ainda falta no brasileiro a compreensão de que somos todos iguais. Falta cota, falta emprego, falta oportunidade. Em Porto Alegre, onde a maioria negra situa-se no subemprego, os brancos não sofrem a mesma dificuldade para conseguir um ofício. Em 2015 o desemprego dos brancos foi de 6,5% e a porcentagem dos negros subiu para 12,30%, quase o dobro.

Esse abismo social entre brancos e negros no mercado de trabalho aparece também nos salários: os trabalhadores negros brasileiros ganharam, em média, apenas 59% do rendimento dos brancos em 2015, segundo dados do PME (Pesquisa Mensal de Emprego). Porém, segundo o IBGE, em 2003, esse percentual de diferença de salários não chegava à metade (48,4%). Já em Porto Alegre, a diferença entre rendas aumentou, em 2014 os negros recebiam 70% dos rendimentos dos brancos e em 2015 este número diminuiu para 67,7%.

Consequentemente, com pouca oferta de trabalho e dinheiro, a ascensão dos negros a universidades privadas não se compara com a dos brancos. Os instrumentos oferecidos pelo governo federal, como cotas, Fies e o Prouni, geram oportunidades para aquelas pessoas que teriam mínimas chances de frequentar o ensino superior. Porém, o equilíbrio de raças nas instituições ainda está longe de ser alcançado.

Para Lires Maria, ex estudante negra de direito da PUCRS, estas políticas sociais ainda não são totalmente aceitas: “Muitos ainda enxergam a política de cotas como um privilégio, pois não levam em consideração a reparação histórica de anos de negação de direitos básicos à comunidade negra e as marcas profundas do racismo ainda existentes”.

Pérola Sampaio destaca o racismo institucional dentro dos partidos. Foto: Rebeca Kuhn

Em 2004, 16,7% dos estudantes do ensino superior eram pretos e pardos, segundo o IBGE, este número cresceu para 45,5% em 2014. Porém, apesar do aumento otimista, os negros não chegaram a atingir o percentual dos estudantes brancos em 2004, que era de 47,2%.

A ausência de representatividade política também pesa na balança desigual de negros e brancos. Ela passou a ser mais visível em 2014 quando os candidatos a cargos políticos começaram a ser obrigados a informarem sua cor à Justiça Eleitoral: Dos 1.627 candidatos eleitos no Brasil, 51 se declaram negros. Ou seja, apenas 3%. Em Porto Alegre foi pior: nenhum candidato negro foi eleito.

Na atual composição da Câmara dos Deputados, os parlamentares brancos representam mais de 70% das vagas, enquanto que os negros ocupam apenas 3,5%. Não há nenhum deputado negro no Rio Grande do Sul.

Só houve um governador negro no estado, Alceu Collares, que também foi o único prefeito de cor preta em Porto Alegre. Apenas um presidente negro no país, Nilo Procópio Peçanha, vice de Afonso Pena, assumiu a presidência em 1909 por apenas um ano.

Tal baixa representatividade não parece incomodar o país, embora a maioria da população seja negra. Mas o incômodo, aqui inexistente, chegou a ONU que, em 2016, se queixou da falta de negros na cúpula do governo brasileiro.

Para a Pérola Sampaio, candidata a vereadora de Porto Alegre pelo Partido dos Trabalhadores (PT) no ano passado, estes dados não são culpa do eleitorado e sim muito característico do racismo institucional que prevalece muitas vezes nas instituições partidárias: “Há um descrédito dentro dos partidos para investir nas candidaturas negras. Em todos os partidos, seja ele de direita, seja ele de esquerda “, diz Pérola.

Quando questionada se o negro vota no negro, Pérola respondeu que sim. Porém, as candidaturas negras, normalmente, são as que têm menor poder aquisitivo. Sendo assim, os outros candidatos mais remunerados acabam cooptando a base eleitoral do político negro com menos poder, conflitando aquele eleitorado para virar seu eleitor à base de privilégios e outras feitorias.

Pérola destaca que os espaços de empoderamento que devem ser preenchidos pelos negros não se limitam somente ao parlamento, mas a todos os lugares. “O espaço que quero  estar é a oportunidade. É isso que a gente busca e reivindica, que os gestores possam dar oportunidade à juventude, em especial a juventude negra, que é aquela que tá morrendo pela bala. Bala que não é perdida, é direcionada. Porque tem bairro, tem CEP”, desabafa.

A oportunidade pedida por Pérola serve de objeto de reflexão. É dever de um país inteiro lutar pelo fim do racismo e fortalecer a igualdade, mas principalmente é responsabilidade do Estado brasileiro oferecer isso através de políticas públicas sociais, de inclusão, de ações afirmativas e de cotas. Todas as maneiras consideradas “desiguais” por uns, reparam, pouco a pouco, a dívida histórica de mais de 500 anos com os negros no Brasil. “Que a gente possa ter o direito de fato de sonhar, e sonhar por aquilo que a gente tanto quer: que é fazer com que o nosso país seja desenvolvido e um país que seja de todas e todos os brasileiros”, conclui Pérola.

+ sobre o tema

Sambo (Coon) – Reconhecendo estereótipos racistas internacionais – Parte III

Em 1898, quando a escravidão nos EUA já havia...

Camila Pitanga diz que o racismo no Brasil ainda é velado

Aos 32 anos, Camila Pitanga está rindo à toa....

para lembrar

Candidato negro – o que vem por ai ?

Em abril de 2002, com a renúncia de Anthony...

Benedict Cumberbatch, o Sherlock, se desculpa após acusação de racismo

Ator que concorre ao Oscar disse que foi "um...

Campanha contra o racismo dá voz e corpo ao preconceito

Objetivo de ONG australiana é mostrar como o "racismo...

Em apenas sete meses, PM matou 271 pessoas em SP

De janeiro a julho deste ano a Polícia Militar...
spot_imgspot_img

OAB suspende registro de advogada presa por injúria racial em aeroporto

A Ordem dos Advogados do Brasil (OAB-MG) suspendeu, nesta terça-feira (25), o registro da advogada Luana Otoni de Paula. Ela foi presa por injúria racial e...

Ação afirmativa no Brasil, política virtuosa no século 21

As políticas públicas de ação afirmativa tiveram seu marco inicial no Brasil em 2001, quando o governador do Rio de Janeiro Anthony Garotinho sancionou...

Decisão do STF sobre maconha é avanço relativo

Movimentos é uma organização de jovens favelados e periféricos brasileiros, que atuam, via educação, arte e comunicação, no enfrentamento à violência, ao racismo, às desigualdades....
-+=