As contribuições opostas de Lupita Nyong’o e Anitta na padronização da beleza

 

por Emir Ruivo

Então a revista People elege Lupita Nyong’o a mulher mais bonita do mundo. Não chega a ser surpresa, posto que a moça é realmente linda, mas isso chamou a atenção do mundo por ter sido um movimento fora da curva para a revista.

As contribuições opostas de Lupita Nyong’o e Anitta na padronização da beleza

 

Todas as mulheres apontadas como as mais belas anteriormente eram brancas, exceto por duas negras. Ambas, no entando, “europeizadas” (e lindas também, diga-se). Beyoncé com seus cabelos lisos esvoaçantes e Halle Berry com seu narizinho fino. As duas com pele relativamente clara.

Lupita entra em cena com a pele escura, a boca grossa, o nariz arredondado, o cabelo crespo. É linda não apesar disso, mas também por isso. É uma ativista da beleza negra, faz questão de preservar todas as suas características.

Na mesma semana, Anitta foi ao programa dominical líder de audiência mostrar seu nariz novo, mais fino, mais europeu. Isso já seria antítese suficiente à atitude de Lupita se Faustão não tivesse “contribuído” com uma piada que soou racista.

As contribuições opostas de Lupita Nyong’o e Anitta na padronização da beleza

 

O natural parece estranho num ambiente onde impera o artificial. A dançarina Arielle Macedo era um suco de laranja na estante dos refrigerantes, e Faustão disse, ao apresentar um vídeo-tape, que ela tinha “cabelo de vassoura de bruxa”.

É bom que se diga que é duro fazer TV ao vivo. Uma possível gafe, que poderia ser contornada com relativa facilidade num ambiente pessoal, é transmitida para milhões de espectadores. Torna-se uma gafe multiplicada e amplificada.

Isso obviamente não torna admissível o que Faustão disse, mas também não o torna um monstro. Até mesmo Malcolm X, grande ativista americano dos direitos negros, já foi pego pela cultura de que a forma europeia era mais bonita. Eis o que escreveu sobre a ocasião em que alisou o cabelo pela primeira vez, na sua auto-biografia:

As contribuições opostas de Lupita Nyong’o e Anitta na padronização da beleza

 

“Que ridículo eu fui. Idiota o suficiente para olhar o espelho feliz por ter cabelos como os de homens brancos. Eu jurei para mim mesmo que jamais teria cabelo crespo novamente, e por muitos anos não tive. Esse foi meu primeiro grande passo para a auto-degradação. Sob forte dor e com o couro cabeludo literalmente queimado pelo produto alisador, eu aderi àquela multidão de negros que sofrem lavagem-cerebral, acreditam que são inferiores, e que violam seus corpos criados por Deus tentando parecer bonitos segundo os padrões brancos”.

Nem Faustão, nem Anitta e nem Arielle têm obrigação de ser Lupita. Nem Lupita tem obrigação de ser Lupita.

E nenhum deles têm que ser Malcolm X.

As contribuições opostas de Lupita Nyong’o e Anitta na padronização da beleza

 

Não se trata aqui de fazer patrulhamento sobre o que o apresentador de TV deve ou não falar, ou sobre se a cantora deve ou não operar o nariz que é só dela. Trata-se de um ensaio sobre o que é um bom modelo. Nada além disso.

O caminho para a europeização da beleza já foi percorrido por diversas pessoas. Foi levado ao extremo pelo gênio Michael Jackson, talvez o artista mais completo da história a já trabalhar na música pop. Michael afinou o nariz sabe-se lá quantas vezes, alisou o cabelo, e chegou ao ponto de ficar branco (isso, forçado pelo vitiligo).

Só leva a sofrimento, como se pôde ver.

As contribuições opostas de Lupita Nyong’o e Anitta na padronização da beleza

 

Lupita é o exemplo oposto, e a People, ainda que com atraso, fez um trabalho magnífico em apontá-la mulher mais linda do mundo, pelo que a mensagem representa: você não precisa entrar nos padrões brancos para ser linda.

E isso serve para o oriental, o indígena, e demais povos. Beleza é harmonia nas formas. Nada mais.

Anitta, infelizmente, não ouviu essa mensagem. E agora contribui para transmitir a mensagem oposta para outras pessoas. Exibe feliz seu novo nariz.

As contribuições opostas de Lupita Nyong’o e Anitta na padronização da beleza

 

Não, não é pecado. Mas passa uma mensagem, e também não é pecado se defender dela.

Todos nessa história são mais vítimas de uma cultura ancestral do que culpados por ela. É possível que não tenham consciência do que promovem. Ou que não acreditem na contra-cultura. Ou que não se sintam fortes o suficiente para combater esse padrão. Ou simplesmente que sejam cínicos.

Ninguém vai saber exatamente. Mas nós podemos escolher nossos exemplos.

Nota atualizada: como era esperado, Faustão se defendeu pela brincadeira com a dançarina em seu programa. “Brinquei falando que o cabelo era estilo ‘vassoura de bruxa’ porque era um cabelão vermelho”, disse.

 

Sobre o Autor

Emir Ruivo é músico e produtor formado em Projeto Para Indústria Fonográfica na Point Blank London. Produziu algumas dezenas de álbuns e algumas centenas de singles. Com sua banda, Aurélios, possui dois álbuns lançados pela gravadora Atração. Seu último trabalho pode ser visto no seguinte endereço:http://www.youtube.com/watch?v=dFjmeJKiaWQ 

 

 

 

 

 

Fonte: DCM

 

 

 

 

 

 

 

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