As estrelas literárias sem firmamento na África

Eclosão de escritores da África subsaariana contrasta com a situação material do setor editorial na região

Por Carles Geli, no El País

Da esquerda para a direita, Chimamanda Ngozi Adichie, NoViolet Bulawayo e Nnedi Okorafor, vistas por Fernardo Vicente.

 

“Não podemos entender o mundo se continuarmos fingindo que uma pequena fração é representativa do mundo inteiro (…). As histórias devem olhar o mundo cara a cara: é a hora de dizer que a superioridade econômica não significa superioridade moral. É a hora dos novos narradores”, disse a nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie, paradigma da rutilante voz literária e de pensamento que emerge imparável da África Subsaariana, na sua palestra de abertura da 70ª Feira do Livro de Frankfurt, há 15 dias. A indústria dá a razão à autora de Americanah e Sejamos Todos Feministas. O grande evento mundial do setor editorial promoveu, sob uma significativa epígrafe bilíngue — Lettres d’Afrique: Changing de Narrative — cerca de 20 atos nos quais 34 palestrantes de 19 países, do Benin e Burundi ao Togo e Zimbábue, dissecaram a situação do livro em sua região. Já há uma mina a céu aberto por lá. Mas a esquizofrenia é total. Enquanto no estande da magnífica editora francesa Editions du Seuil luzia uma foto gigante do congolês Alain Mabanckou como sua grande aposta para a rentrée literária, no fórum se constatavam os problemas dos editores subsaarianos para encontrar (e pagar) o papel para os seus livros.

Sair da prateleira

“Contam histórias universais, da família à guerra, da maternidade ao genocídio, do amor à angústia vital ou da morte, mas com o sedimento de uma poética nascida da tradição oral que agora já se consolidou na escrita, ao passar pelo conhecimento, a leitura e a prática de uma tradição escrita ocidental por parte de autores que se formaram nos EUA ou na Europa; e isso lhes deu uma potência literária da qual antes seu relato carecia”, observa Anna Soler-Pont, graduada em Filologia Árabe, que há 26 anos criou a agência literária Pontas com o intuito de divulgar autores africanos no Ocidente. “Logo tive que deixar isso de lado e ampliar o âmbito, porque não havia demanda, era risco puro: os editores não os queriam; os números é que mandam”, diz. Hoje ela conta com uma dezena desses autores, três dos quais (a ganesa Ayesha Harruna Attah, a sul-africana Kopano Matlwa e a nigeriana Minna Salami) integrarão a antologia New Daughters of Africa, a ser lançada em março próximo nos EUA, herdeira da seminal Daughters of Africa (Virago), de 1992, e que reúne tanto as grandes vozes do continente como da diáspora intelectual.

“As editoras ocidentais só publicam valores seguros, que usam uma das quatro línguas coloniais — inglês, francês, português ou espanhol —, quando o patrimônio africano oral e escrito e, portanto, sua cosmovisão, é muito vasto; há vozes em língua iorubá, por exemplo, mas, claro, vivem numa diáspora entre a Nigéria, Togo, Benin, Somália… o que torna difícil o seu conhecimento”, diz Raphael Thierry, da plataforma EditAfrica e um dos dinamizadores do fórum de Frankfurt. Não há muitas cifras de nada, e tampouco são seguras, mas calcula-se em cerca de 2.000 as línguas faladas no continente. Thierry aponta ainda uma “certa lógica colonial” no trato editorial do Norte com relação à África Subsaariana: “Os anglo-saxões, como a Penguin Random House e a Pan Macmillan, têm filiais em alguns países, como a África do Sul; os franceses são mais verticais e centralizam tudo em Paris, mas em ambos os casos a estratégia é vender principalmente seus autores ocidentais às nascentes classes médias africanas”. Soler-Pont matiza. “Pela primeira vez, o processo está sendo revertido; trata-se de consolidar e normalizar a literatura subsaariana; por enquanto, principalmente com escritores que usam as línguas coloniais, o resto demorará um pouco mais; aqui o importante é que já não fiquem mais numa pequena prateleira que diga ‘Literatura africana’, e sim ‘Literatura’, apenas.”

 

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