Brasil: onde racistas só se surpreendem com o racismo dos outros

Não dá pra ter indignação seletiva, revoltar-se com o que aconteceu com a jornalista, mas calar-se quando é com o porteiro, com o menino da periferia

Por  Djamila Ribeiro Do Carta Capital 

Como foi bastante divulgado durante a semana, Maria Júlia Coutinho, carinhosamente chamada de Maju, a “garota do tempo” do Jornal Nacional, foi alvo de comentários racistas nas redes sociais. Rapidamente criaram-se campanhas de apoio a ela, pessoas manifestaram-se contra o episódio e a hashtag Somos todas Maju liderou o trend topics do twitter.

Obviamente que me solidarizo com Maju, como mulher negra que se coloca, sei o que é receber ofensas nas redes sociais de pessoas sem noção. Porém, o que me intriga é a falta de criticidade de muitas pessoas que se solidarizaram.

Quando eu vi algumas pessoas da minha rede de amigos ficarem surpresos com as ofensas, minha vontade foi dizer: queridinhas, é a mesma coisa que vocês faziam comigo na escola, lembram? Lembram meninos, que vocês corriam de mim na época da festa junina dizendo categoricamente: “não vou dançar com a neguinha?” Quase escrevi para um colega que estava revoltado se ele lembrava ter ficado surpreso ao saber que eu fazia mestrado em filosofia política e falava outros idiomas quando me conheceu e ainda disse surpreso “nossa, você é inteligente mesmo, se fosse loira seria um fenômeno”.

Aos que dizem “em pleno século XXI e isso ainda acontece” falta conhecimento da história do Brasil, de que esse país foi fundado no racismo, é estrutural. Eu fico surpresa com a surpresa dessas pessoas. Como eu sempre digo, não precisa ler Franz Fanon, basta ligar a TV. Num país com 52% de população negra, por que essas mesmas pessoas não se surpreendem com a ausência de negros na TV? Por que não criam uma campanha chamada Por uma TV menos eurocêntrica, por exemplo?

Quem trabalha com educação e ficou indignado está trabalhando com a lei 10639? Trata-se de uma lei de 2003 que alterou a lei de diretrizes e bases da educação e obriga a inclusão do ensino da história de África e afrobrasileiras na escola.

Interrompem a aula quando um aluno faz ofensas racistas a outro ou diz que isso é brincadeira e não faz nada?  Quem é empregador, contrata profissionais negras? É urgente que pessoas brancas discutam racismo pelo viés da branquitude, que se questionem. Que reflitam e perguntem a si mesmas: quantas vezes eu contribui com a baixa estima da minha amiga negra ao fazer piadas sobre o cabelo dela? Quantas vezes eu tentei destruir o sonho de uma pessoa negra por achar que a filha da minha empregada negra não podia fazer faculdade com meu filho e sim servir minhas próximas gerações? Quantas vezes eu naturalizei que mulheres negras deviam me servir em vez de entender que elas são empurradas a esses empregos por conta do racismo e machismo estrutural?

d603e756-7a4e-4d14-a8fd-287891d5c113Os apresentadores William Bonner e Renata Vasconcellos posam com cartazes com a frase #SomosTodosMaju

Sem esses questionamentos não serve de nada mostrar indignação. De campanhas que não mexem nas estruturas e não se questiona privilégios já estamos fartas. Não adianta se revoltar com as ofensas que Maju sofreu julgando que essas são coisas isoladas, que só acontecem às vezes quando o racismo é uma realidade para a qual muitos fecham os olhos.

Não adianta se incomodar com essas ofensas e ser contra as cotas, ser fã do descerebrado do Gentilli, chamar militantes de vitimistas quando apontam racismo. Ou ainda ser a favor da redução da maioridade penal quando se sabe que essa só vai encarcerar jovens negros porque julga-se que jovens brancos ricos ou de classe média são aqueles que de boa família que cometeram um erro.

Não dá pra ter indignação seletiva, revoltar-se com o que aconteceu com a jornalista, mas calar-se quando é com o porteiro, com o menino da periferia.

No Brasil até quem se coloca contra certas atitudes racistas não sabe ou finge não saber como o racismo age. Racismo é um sistema de opressão que nega direitos, vai além de ofensas. Como diz Kabengele Munanga: “o racismo é um crime perfeito no Brasil, porque quem o comete acha que a culpa está na própria vítima, além do mais destrói a consciência dos cidadãos brasileiros sobre a questão racial. Nesse sentido é um crime perfeito”.

Toda solidariedade a Maju e toda indignação perante a hipocrisia. Sim, o Brasil é racista e o ódio racial contra a população negra existe desde que o primeiro navio negreiro aqui chegou.

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