Carandiru: Os policiais foram condenados. Mas o que aconteceu de fato?

Por Luiz Mendes

Não fiquei nem um pouco feliz com a condenação dos policiais militares envolvidos na matança do Carandiru. Depois de tudo o que vivi, nem ao meu pior inimigo recomendaria a prisão. Não sinto alegria alguma em saber que mais pessoas vão sofrer o que eu já sofri. Claro, eles precisavam ser condenados. Absolver seria dar aval às matanças futuras. Não acredito em castigos ou recompensas, mesmo porque não creio em “bem x mal”, esse maniqueísmo redutor e ultrapassado. Sou contra o massacre, a matança indiscriminada, mas não contra os homens que a praticaram. Não estou em luta ideológica. Acredito que devemos sempre procurar as consequências e trabalhar nelas para que não ocorram novamente.

Dados não oficiais estimam que a cada três anos, o sistema carcerário brasileiro mata o mesmo que o massacre do carandiru. Foto: Marcelo Camargo/ABr

Não creio que os culpados sejam somente aqueles que praticaram os crimes. Eu me preocupo em saber em como aqueles homens chegaram àquele grau de barbárie e saíram matando tudo que vissem pela frente. Com certeza isso não partiu de alguma “loucura” deles. Não é possível que 23 homens fiquem “loucos” assim de repente, em conjunto e para a mesma finalidade. São homens que juraram fazer cumprir a lei, pertencentes a uma sociedade cristã segundo a qual matar é pecado capital: o que aconteceu de fato?

Doutrina. Essa é a palavra: doutrinação, lavagem cerebral e a prática das ideias de condicionamento humano de Pavlov. Esses homens vêm sendo doutrinados para se tornarem insensíveis e treinados para o combate armado, para matar ao mais leve sinal de resistência ou risco. Esse ainda é um ranço da ditadura que a sociedade civil ainda não conseguiu coragem para acabar. Do jeito que as coisas estão, parece que vivemos uma guerra entre os policiais e todas as pessoas desajustadas da sociedade. A estupidez gera certezas absolutas. E a disciplina militar é toda embasada em regras inflexíveis e doutrina.

O que precisamos é de uma polícia cidadã, que possua sensibilidade e flexibilidade para lidar com o público. Científica, investigativa e que possua critérios humanos para suas ações mais viris. Assim é a polícia nas nações civilizadas. Como em quase toda parte do nosso planeta (salvo países totalitários), a polícia é civil e não militar. O militar é treinado para defender a nação de possíveis ataques vindos do exterior e não para atuações internas. Claro, pode até servir de apoio para a polícia civil, mas não fazer o seu papel.

É de se pensar que um homem condenado a essa quantia exagerada de anos de prisão, 156 anos, à primeira oportunidade desapareça. E então o juiz dá o direito a eles de apelarem da sentença em liberdade. Parece brincadeira; talvez nem o juiz acredite na pena que sancionou. É como nos EUA, onde o sujeito pode ser condenado a três ou mais penas de morte. É uma pena que inviabiliza a ideia de justiça, absurda por sua impossibilidade. Terá de ser reduzida a uma quantia exequível e razoável. Mas foi assim também para o Coronel Ubiratan: condenado a um excesso de penas, foi absolvido na apelação. Será esse mais um jogo de cartas marcadas?

*Luiz Mendes é escritor. Autor de quatro livros, no primeiro deles, “Memórias de um sobrevivente”, discorre sobre os 31 anos em que passou preso. É ainda colunista da revista Trip e, no dia do Massacre do Carandiru, estava em um prédio vizinho, na Penitenciária do Estado.

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Fonte: Carta Capital

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