Carta à minha amiga negra, favelada, que acredita num Deus patriarcal (e misógino)

Te telefonei estes dias, pois estava preocupada com o teu silêncio. Tem sido assim há mais de vinte anos, eu te procuro e você tenta escapar. Entendo que para você não é fácil a avalanche de coisas que te aconteceu e ainda acontece, uma atrás da outra, sem pausa, sem descanso. Mas, a nossa última conversa me deixou paralisada. Algo que você disse ainda ressoa em mim e tive vontade de chorar na hora, mas não o fiz, pois, é você quem precisa de colo. 

Você perdeu o pai muito cedo, depois o irmão, a mãe adoeceu em seguida e até hoje sofre com isso. As tuas irmãs apanharam muito dos maridos, para uma delas, a morte do esposo foi a única salvação, único alívio possível, pois uma mulher não deixa o marido e a família, ensinaram-lhe. Você chegou até mim num curso de magistério, em Goiânia, quando eu era postulante para vida religiosa feminina e fomos colegas de classe. Fiz os votos, mudei-me, você se mudou e a vida sempre nos deu a oportunidade de encontrar novamente. Lembro-me quando você contava do trabalho na casa de famílias desde que tinha oito anos, sem salário, apenas com a promessa de terminar o segundo grau. Depois do magistério, ao invés de você sair deste lugar, a família te passou, como um objeto, para a filha recém-casada e você se mudou de Estado e ficamos anos sem nos ver, sem nos falar. 

Quando te reencontrei pelas redes sociais, você tinha tido uma filha e contou-me que o pai não a assumiu, te deixando sozinha. Saíste da casa da família e comprastes um barraco na favela, criando a menina com o fruto do teu trabalho como faxineira, passadeira e manicure. Depois de um tempo, veio a possibilidade de amar, de ser amada, e você foi morar com o pai do seu segundo filho. Quando ele nasceu, começou a apanhar e, corajosamente, tomou a atitude de colocá-lo para fora, não sem consequências, como o julgamento das pessoas ao redor e as ameaças de morte da parte dele. Quantos boletins de ocorrência você compartilhou comigo nestes anos! Até mesmo uma fuga para outro estado, onde ele não pudesse te achar, com duas crianças pequenas. Ao retornar para casa, depois de um ano, tinham roubado tudo no seu barraco, até os fios elétricos.  Temos conversado muito sobre sofrimento, sobre falta de amparo e suporte, sobre uma vida inteira de exploração para o enriquecimento dos outros. Na pandemia, ufa, quanto aperto, minha amiga! Você pegou o Covid, as crianças pegaram, perdeu os trabalhos, a fome te sondou e você lutou com todas as forças para viver e ver os teus filhos crescerem. Eu sei que o teu maior medo é deixá-los órfãos neste mundo desgraçado, que odeia mulheres racializadas e pobres, do mesmo jeito que o fruto dos seus ventres. 

Mas, voltemos à nossa última conversa. Depois de mais de oito anos sozinha, a solidão bateu, o coração queria amar de novo, se abrir. Você conheceu uma pessoa e, num descuido dele, pois homens geralmente não dão a mínima para as mulheres, os seus corpos e as suas existências, temeu estar grávida. Te disse para ir à farmácia comprar a pílula do dia seguinte, eu pagaria. E você respondeu: “Não tenho coragem”. Sentei-me e suspirei: “Coragem de quê?” E você respondeu: “coragem de fazer isso, é uma vida”. Eu te disse que você mal dava conta da tua, que está no limite físico e mental e que a tua vida e a dos teus filhos tinham prioridade. Você chorou e disse que só de pensar, se sentia em culpa. Culpa por remediar a situação? Culpa por fazer o melhor para a tua família? Indaguei-te duramente. Mas, ao desligar o telefone, percebi que não adiantava nenhum discurso libertário, nenhum conselho feminista, nenhum apoio financeiro, pois você estava atolada na crença num Deus que pune mulheres e, se engravidam, faz parte da punição aceitar passivamente. A tua escolha não conta, a dos homens que abandonam, são toleradas. 

Eu não posso te dar as minhas lentes para ver o mundo, as minhas leituras, as minhas experiências, inclusive aquela do luto quando eu deixei de ser freira e abandonei a fé num Deus patriarcal. Eu só posso te dizer que rompi com o que aprendi e não foi de um dia para a noite, não foi sem dor e sofrimento, sem culpa e represálias de pessoas que diziam amar-me. Depois do convento, nem mesmo no masculino conseguia me dirigir a “Ele”, pois era tudo tão fálico, desde as orações, as imagens do divino que me ofereceram ao longo da vida, os retiros espirituais, a bíblia, a história da Igreja Católica e das tantas denominações cristãs. Se soubesse como a religião dominante se impôs, te causaria náuseas. As diversas mulheres queimadas vivas, que adoravam outros deuses, que tinham um canal direto com o sagrado, sem passar por homem nenhum. E a confissão? Inventada para que os padres pudessem saber de tudo o que se passava nas famílias da comunidade. E a reforma protestante? Tão fálica quanto aquilo que contestava. As religiões africanas, com mulheres à frente, demonizadas, afinal, somente homens detém a privilégio de interpretar Deus e falar por Ele. Nos tiraram, à força, o domínio sobre o bem e o mal, sobre o bendizer e o maldizer, a autoridade da palavra, profética ou julgadora. 

Ah, amiga! Lembro-me da minha infância, no início dos anos 80, na periferia de Belo Horizonte. Antes do Estado nos acolher, em cada esquina, uma igreja implantou-se. Nos fundos de garagens, lojas alugadas, atraindo aquela gente sofrida de saia longa, gritando as suas dores. Qualquer um, qualquer um mesmo, podia conduzir as multidões. Quanto homem medíocre foi empoderado, ditando o destino de centenas de pessoas perdidas! Ivone Gebara, freira feminista, ousou dizer isso na cara da Igreja em 1995, e foi proibida de falar em nome dela e até perdeu a cátedra de professora teóloga, onde ensinava. Mas, o que ela diz no seu livro “Rompendo o silêncio: uma fenomenologia feminista do mal” (2000), é profético e ousado. O que é o mal, não pode mais ficar a cargo dos homens. O mal, segundo ela, é muito mais esse poder imposto às mulheres pela Igreja e as demais instituições do que uma força sobrenatural e metafísica.

Romper com a religião dominante é doloroso, pois você, já marginalizada, ainda tem que lidar com a falta de suporte e julgamentos de toda uma sociedade. É preciso que você tenha algo para colocar no lugar. Eu pude fazer isso e não te julgo, embora me entristeça profundamente que este mesmo Deus te faça assumir mais pesos e te culpe por isso. Um homem branco, privilegiado, assassinou uma jovem atriz em 1992, com diversas tesouradas, crime este premeditado e cruel. Depois o mesmo homem virou pastor. O Patriarcado passou a borracha e apagou os seus crimes aqui e numa possível outra dimensão. Veja bem, amiga, já você, você, que nunca fez mal a ninguém, seria condenada por não querer uma gravidez. 

 “Eu não tenho coragem”! Que frase forte! Eu queria que você tivesse a coragem de te priorizar, de olhar com compaixão para as suas dores e trajetórias e pudesse romper com a aceitação passiva do que chamam “vontade de deus”. Quando me inculcaram que eu tinha sido “chamada” para ser freira, eu não conseguia romper com a ordem religiosa, porque, para mim, eu estava dizendo “não” a quem tinha me chamado, ou seja, o mesmo que criara o mundo e todas as coisas. Como eu ousaria? Para conseguir me libertar precisei olhar para aqueles que me disseram que este “Ele” tinha o poder sobre o meu destino. Não, não olhe para o que você chama de Deus, olhe para todos que te falam Dele. Tem mais de humano em todos estes discursos que de divino e metafisico.  Eu queria que você olhasse quem está falando em nome do que chamam de Deus, hoje, ontem e nos primórdios da história humana. Quem se auto perdoa e quem condena os outros, quem isenta homens das suas responsabilidades e barbáries e condena mulheres, quem tem o peso da vida e do cuidado todo nas costas, enquanto dizem que Ele é amor e te salvará. Eu queria que você olhasse nos olhos, de verdade, e dissesse um grande “não” a todos os que te adicionam mais carga, mais sofrimentos e sequer te alivia a existência. E, para terminar, quero deixar-te um trecho de Lévinas, um filósofo: 

Eu não queria definir nada por Deus, porque é o humano que eu conheço. É Deus que eu posso definir pelas relações humanas e não inversamente. A noção de Deus, Deus o sabe, eu não me oponho a ela! Mas, quando eu devo dizer alguma coisa de Deus, é sempre a partir das relações humanas. (LÉVINAS)


Fabiane Albuquerque é doutora em sociologia e autora dos livros Cartas a um homem negro que amei, pela Editora Malê e Ensaio Sobre a Raiva, pela Editora Patuá.


** ESTE ARTIGO É DE AUTORIA DE COLABORADORES OU ARTICULISTAS DO PORTAL GELEDÉS E NÃO REPRESENTA IDEIAS OU OPINIÕES DO VEÍCULO. PORTAL GELEDÉS OFERECE ESPAÇO PARA VOZES DIVERSAS DA ESFERA PÚBLICA, GARANTINDO ASSIM A PLURALIDADE DO DEBATE NA SOCIEDADE. 

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