Desde que lançou Que horas ela volta?, a diretora de cinema Anna Muylaert virou uma espécie de porta-voz informal para questões envolvendo trabalhadores domésticos.
Por Mariana Della Barba, do BBC
Seu filme, no qual a atriz Regina Casé vive a doméstica Val, escancara um tipo de relação entre patrão e empregado que é realidade em muitas casas brasileiras.
Diante da “novela” das babás de branco que teve início no ano passado, Anna topou falar com a BBC Brasil.
Durante a conversa, a diretora falou de sua revolta com as regras de clubes paulistanos em exigir uniforme branca das babás de crianças sócias.
O caso começou quando a advogada Roberta Loria, que é sócia do Esporte Clube Pinheiros (zona oeste), resolveu acionar o Ministério Público de São Paulo, após se revoltar com o fato de o local dificultar a entrada da babá de suas filhas por ela não estar com uniforme branco.
Veja os principais trechos da conversa com Anna Muylaert:
“Quando eu vi essa notícia (das babás sendo obrigadas a usar brancos pelos clubes), fiquei sem palavras. É uma regra extremamente autoritária, anacrônica, para marcar a divisão social. É algo que mantém o estigma da escravidão.
É como botar um anúncio, um aviso claro como uma melancia na cabeça, para que não haja confusão: eu sou um empregado, eu não entro na piscina, eu não sento na mesa.
Achei tudo tão terrível que fiquei pensando: ‘Até quando a gente vai achar legal ter escravo?’
É óbvio que se a babá e os patrões concordarem com o uso do uniforme branco, se ela quiser, não é nenhum problema. Agora, um clube exigir roupa branca, isso é querer manter uma situação em que os sócios são sempre privilegiados.
Direitos negados
Mas como fomos criados em meio a essas regras, o que acontece é que a Val (doméstica protagonista do filme, interpretada pela atriz Regina Casé) achava normal ela nunca ter entrado na piscina do patrão. E a babá do Pinheiros não achava um grande problema o clube obrigá-la a usar branco.
Claro que elas vão achar normal. São direitos que nunca lhes foram dados. Mas é justamente por isso é que é tão importante ter pessoas que tomam atitude, como a Roberta.
É preciso muito esforço para mudar. E não é fácil, porque parte da elite do Brasil quer manter tudo como se fosse há 400, 500 anos atrás. ‘Eu vou contratar uma mulher por um preço baixo e vou continuar na corte.’
Uma amiga minha uma vez reclamou que a empregada dela foi dormir no meio da festa que ela estava dando, já de madrugada. Eu virei e falei: ‘Olha, a escravidão acabou’.
Cinismo
Outro dia eu vi no Twitter uma frase genial: “Aplaude Que horas ela volta? no Facebook, mas em casa reclama que a empregada não sabe fazer estrogonofe”.
Isso representa muito bem que uma coisa é discutir a coisa na teoria e a outra é colocar em prática.
Outro dia, em uma palestra, uma menina que era filha de doméstica me contou como ainda recebe olhares de cima para baixo.
![‘Até quando a gente vai achar legal ter escravo?’, questiona Anna Muylaert](https://ea9vhhuzko5.exactdn.com/wp-content/uploads/2016/02/anna_640x360_getty_nocredit.jpg?strip=all&lossy=1&quality=90&webp=90&avif=80)
Exemplos assim mostram que ainda temos um longo caminho para avançar.
Mas acho que alguma coisa já começou a mudar. Só de estarmos conversando sobre isso já é algo. Antes, isso nem era discutido.
[Alerta de spoiler para quem não viu Que horas ela Volta?]
A babá topar usar branco no shopping mas ciente de que isso é para a mãe da criança posar de madame é a Val entrando na piscina da casa dos patrões.
Elas começaram a ver, elas já estão num outro patamar.”