Consciência negra, consciência humana ou falta de consciência? Onze motivos pra desacreditar no mito da democracia racial

Novembro: o mês em que muita gente mal informada, com preguiça de pensar e ausente de empatia vai compartilhar uma enxurrada de conteúdo questionável sobre a consciência negra, ou melhor, humana. Porque somos todos iguais, só que não.

Do Aline Xavier

É fato que as pessoas negras, nos últimos anos, estão mais conscientes dos seus direitos. Quem é militante se sente cada vez mais empoderado. E vem, mesmo que não tão rápido quanto deveria, conquistando voz e espaço. E por esse motivo, é inaceitável aceitar a mentira propagada na sociedade de que não existe mais preconceito racial. Como brilhantemente disse Gabriel, o Pensador: o racismo é burrice, mas o mais burro não é o racista. É o que pensa que o racismo não existe.

O dia 20 está próximo. Nada mais apropriado então, do que elencar onze motivos pelos quais sim, é necessário não somente um dia, mas muita conscientização e reflexão a respeito do tema. Pois a escravidão acabou, mas o estigma permanece.

A disparidade no mercado de trabalho: quase não vemos negros trabalhando em eventos e lojas de grife. Em contrapartida, em funções de baixa instrução eles são maioria. Por trás de requisitos como boa aparência (no qual os recrutadores estabelecem um tipo de corpo, cabelo e cor dos olhos, por exemplo) existe um preconceito mascarado;

As mulheres negras estão mais propícias ao celibato involuntário (vulgo solteirice). Nossa cultura machista as coloca como frutas exóticas para mera apreciação. São objetificadas e animalizadas. Elas são as mulheres pra comer, mas as pra casar são as que possuem traços eurocêntricos. E pra piorar, muitos homens negros, ao ascenderem socialmente, optam por parceiras de pele mais clara. A quantidade de jogadores de futebol casados com mulheres loiras é um bom exemplo disso. É como se a mulher fosse um troféu e uma forma de se afirmar socialmente, principalmente no meio elitizado;

A falta de representação na mídia: quase não se vê personagens negros na TV (jornais, novelas, séries e afins). E quando há, geralmente ocupam papéis de empregadas, trabalhadores braçais ou personagens caricatos. Crianças crescem sem nenhum modelo de representatividade que possam admirar, o que afeta diretamente a autoestima delas;

Somos minoria nos espaços públicos, principalmente os “elitizados”: a não ser em cargos em que estamos pura e simplesmente servindo os outros, é perceptível a quase ausência de negros em shoppings, restaurantes mais caros e baladas em geral. E as pessoas estão acostumadas com essa invisibilidade. Quase ninguém olha em volta e se questiona: aqui não tem preto, pô! Apesar de sermos mais de 50% da população do país, a maioria de nós não tem condições financeiras e acesso a lazer e entretenimento;

Humor opressor e babaca: com a onda do “politicamente incorreto”, todas as minorias passaram a ser alvo de piadas discriminatórias. E claro, os negros não poderiam ficar de fora dessa. Mais de uma vez houve casos de humoristas humilharem e constrangerem negros na Internet. Pior que isso: alguns deles se submetem a um papel ridículo e contam piadas que ofendem seus semelhantes, reforçando estereótipos;

As ações afirmativas são motivo de chacota por grande parte da população: algumas dessas ações, como por exemplo, as cotas raciais e sociais em universidades, têm como objetivo reduzir o abismo existente entre o negro pobre e a instituição. O que muita gente não entende é que isso não é privilégio, mas sim uma forma de ampliar o acesso a quem sequer tinha perspectiva de melhoria social. A educação superior ainda é elitista e tem muito a melhorar. Menos de 3% dos formandos em Medicina são negros, e ainda há pessoas que acham que queremos roubar a vaga de alguém;

Somos desrespeitados como consumidores: quem aqui é negro e nunca foi maltratado, seguido num shopping ou deixou de ser atendido por vendedores em lojas levante a mão. O negro, lamentavelmente, é associado à pobreza, ao roubo, à falta de condições. Certa vez, fui a uma loja de sapatos mais cara e fui totalmente ignorada pelas vendedoras, enquanto as outras pessoas que chegavam eram prontamente atendidas. Precisei chamar o gerente para que ele pedisse a uma das vendedoras que cumprisse o seu ofício. Nem preciso dizer o quão péssimo foi esse atendimento;

Somos as maiores vítimas de violência policial: é perceptível que pessoas negras são abordadas com muito mais freqüência do que as brancas em revistas policiais, e morta duas vezes mais que elas. São os primeiros suspeitos, julgados por suas roupas e por sua cor. A população carcerária negra no Brasil é em torno de 66%, e a maioria dos presos não concluiu o ensino fundamental.

Temos inúmeros problemas de autoimagem: desde cedo somos condicionados a achar que existe algo errado conosco, e que temos que corrigir através da automutilação. Nossos cabelos (apelidados de ruins, duros) são submetidos a químicas degradantes e algumas até cancerígenas, nossa pele é “clareada”, as mulheres se maquiam de modo a disfarçar seus traços naturais e torná-los mais “finos” (leia-se: como os de uma pessoa branca), dentre outros muitos exemplos de violência à nossa naturalidade. Tudo para se equiparar a um modelo eurocêntrico de beleza. E muitas vezes essa busca pela perfeição semelhante à da beleza branca traz inúmeros prejuízos emocionais aos negros;

Somos 71,6% do número de analfabetos do país: além desse dado, a evasão escolar é muito maior entre crianças e jovens pretos. Por causa da pobreza, grande parte deles precisa trabalhar para ajudar no sustento da casa. Quando o trabalho é excessivamente extenuante, ininterrupto, com carga horária abusiva (normalmente em funções operacionais, como limpeza, jardinagem ou outros serviços pesados), muitos não resistem e abandonam a escola;

Religiões de matriz africana são grandes alvos de intolerância religiosa: Esse problema, a meu ver, seria amenizado se houvesse uma melhoria na educação. A lei 10.639/03estabelece que deve ser ensinada nas escolas temas ligados à cultura Afro-Brasileira, incluindo as religiões. Como não prática isso não acontece e a ignorância das pessoas não têm limites, praticantes são demonizados e vistos como perigosos, o que resulta em muitas ações violentas;

Existem inúmeros outros motivos que comprovam o quão presente é o racismo é na nossa sociedade, mas citar todos tornaria o texto muito longo, ou até mesmo um livro. É inconcebível que mesmo sendo a segunda população negra do mundo – o que prova que de“minoria” não temos nada – ainda sejamos tão subjugados como se fôssemos inferiores aos demais.

Enquanto formos estereotipados e associados unicamente a samba, pagode, sexo fácil, bandidagem, ignorância e falta de instrução o cenário não mudará. A luta é longa. E a representatividade e o respeito são imprescindíveis.

Pra encerrar, cito uma frase que li na Internet, de autoria desconhecida, porém muito válida para esse momento: “TODA CONSCIÊNCIA SERÁ NECESSÁRIA, ENQUANTO A CONSCIÊNCIA HUMANA FOR PRECONCEITUOSA E RACISTA”.

+ sobre o tema

Atriz negra e pioneira, Ruth de Souza volta à televisão aos 96 anos

Aos 96 anos, Ruth de Souza voltou à dramaturgia...

Peço desculpas ao meu corpo

Hoje eu queria sinceramente pedir perdão ao meu corpo,...

Única indicada trans ao Oscar anuncia que não comparecerá na cerimônia

Anohni, indicada na categoria de Melhor Canção, não foi...

para lembrar

Conto raro de Toni Morrison vai ser publicado

Para grande parte do mundo, Toni Morrison (1931-2019) foi...

A professora transexual que trocou indenização de R$ 20 mil pela chance de dar aula a seus agressores

A professora de matemática transexual Natalha Claudinei Silva Nascimento...

Católicas vão às ruas contra a aprovação da PEC 181/15

Ontem (08/11), em Comissão Especial da Câmara dos Deputados,...
spot_imgspot_img

Naomi Campbell e as modelos negras que mudaram a indústria da moda

"Você quer ser modelo?", perguntou a caçadora de talentos Beth Boldt, ao se aproximar de um grupo de estudantes na região de Covent Garden, em...

Casos de feminicídio e estupro aumentam no Rio de Janeiro em 2024

Ser mulher no estado do Rio de Janeiro não é algo fácil. Um estudo que acaba de ser divulgado pelo Centro de Estudos de...

‘Só é sapatão porque não conheceu homem’: Justiça condena imobiliária em MG por ofensas de chefe à corretora de imóveis

A Justiça do Trabalho mineira condenou uma imobiliária da região de Pará de Minas, no Centro-Oeste do estado, a indenizar em R$ 7 mil, por...
-+=