Criolo e Mano Brown falam sobre racismo, ambição, Ferraris e Bolsonaro

Representantes de gerações diferentes do rap brasileiro, eles vão dividir o palco no Rio

por Leonardo Lichote no O Globo

Criolo e Mano Brown vão dividir o palco da Fundição Progresso dia 23 de junho – ronccally / Gil Inoue

A conversa cruza temas como “Pantera Negra”, Bolsonaro, Ferraris, racismo, ambição e rap batido na lata. Criolo permite que seu raciocínio descole do chão e flutue em abstrações, mas nunca perde o lastro da rua, do mundo real. Mano Brown é concreto, papo reto, mas seu olhar de observador arguto dá a ele combustível para conexões de ideias surpreendentes. Pensadores originais, de personalidades próprias, juntos eles potencializam sua força, pelas diferenças e semelhanças, como mostram nesta entrevista. E no palco, no show que fizeram em Belo Horizonte em janeiro e que chega à Fundição Progresso dia 23, depois de passar por São Paulo, dia 15 — em agosto, é a vez de Porto Alegre.

— Dividir o palco com Brown não deveria nem se chamar dividir, deveria até ter outro nome — sintetiza Criolo, de 43 anos, referindo-se ao seu projeto com o líder dos Racionais MC’s, cinco anos mais velho. — Tive a oportunidade de estar no palco com Caetano Veloso, Mulatu Astatke, Milton Nascimento, Ivete Sangalo, pessoas que admiro e que são referências. Mas o meu berço artístico e musical é o rap, e nesse sentido estou subindo no palco com meu ídolo maior.

Brown sorri envaidecido e agradece a Criolo num aperto de mão vigoroso. Ele lembra quando ouviu falar do colega:

— Pessoas que conviviam comigo e com o Criolo falavam dele já. A primeira vez que vi foto dele me surpreendi, achei que ele era negão mesmo e ele era mulato. Tinha cabelo encaracolado, magro, usava camisa social branca de manga curta. Tipo professor. Tinha uma lenda de que ele era professor de Matemática. Eu pensava: “Pô, pra professor tá ruim mesmo, o cara veio fazer rap” (risos).

A dupla representa gerações diferentes do rap brasileiro. Mano estourou com os Racionais MC’s em 1997, com o clássico “Sobrevivendo no inferno”, quarto álbum da banda. Criolo atraiu atenções (muitas) a partir de “Nó na orelha”, disco de 2011 que tinha o hit instantâneo “Não existe amor em SP”. Mas partem da mesma base, a consciência de seu papel com o microfone na mão. Um papel que se equilibra entre oferecer alegria aos seus e denunciar injustiças — “festeje seu direito de lutar” e “lute por seu direito de festejar”, como cantaram, respectivamente, Public Enemy e Beastie Boys.

— Você vai pegar um cara que já tem problema e levar para ele problema dos outros para ele resolver numa festa? Ao mesmo tempo, sou um veículo de levar problema e questionamento mesmo — sintetiza Brown.

A memória da origem está presente em cada fala e verso. Criolo explica que “a marca da desgraça que passou pela sua vida fica para sempre”. Brown lembra que começou na década de 1980 cantando rap enquanto batucava na lata de lixo:

— A gente não tinha rádio. Você batia o grave ali na lata, nervoso. Aí os guardas, os urubus, vinham a milhão.

Hoje, olham o cenário do rap brasileiro e dizem: “Vencemos”. Mas Criolo evita definir a nova cara do rap:

— Não somos nós que vamos dizer a cara do novo, ele que vai mudar nossa cara. Elis cantou que o novo sempre vem.

Brown rebate:

— Se possível, vamos andar de Ferrari com eles, né? Ainda vou andar de Ferrari fazendo rap — brinca ele, que vê o movimento para além do indivíduo. — Quando faço um disco, penso em gerar uma onda. É a carreira de vários manos. Sou cheio de querer, de ambição, porque não quero só para mim.

Há novas vozes, mas velhos problemas, como o racismo.

— Os jovens negros estão cada vez mais articulados na luta para extirpar o racismo. E a sociedade, como andou nas últimas décadas para solucionar isso? — provoca Criolo.

Brown acredita que o fluxo de conquistas sociais dos negros nos últimos anos foi interrompido, mas não há volta.

— Você pode estreitar a passagem, mas nunca mais vai parar. Vai passar um só, mas vai ser um preto monstro — aponta ele, que vê mudança na postura do negro, algo que se reflete em marcos como o filme “Pantera Negra”. — Na comunidade, não vejo em nenhum negro o sentimento de inferioridade. Mas vejo algo perigoso, o oposto: excesso de confiança, não querer se preparar para a vida porque é preto, é o Superman.

Sobre o futuro político, Criolo tem dúvidas se haverá eleições. Brown se preocupa com a sedução do militarismo:

— Vejo um pensamento radical na periferia, que cansou de insegurança. Acham que tem que ter um homem branco de farda para tomar conta deles. Mas Bolsonaro não ganha. Porque o Brasil ainda tem muito daquela coisa de “todo mundo samba”. Isso contrabalança com esse Brasil radical de agora, de preto que não gosta de branco, branco que não gosta de preto, rico que não gosta do pobre…

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