Da África ao Brasil, a corrida de obstáculos para se formar médico

Com discurso contra o racismo e trajes típicos do Togo, estudante de 26 anos ganha as redes sociais ao concluir curso na UFRJ

por Ana Paula Blower no O Globo

Marcelo Régua

Natural do Togo, na África, Fleury Kwegir Johnson chegou ao Brasil em 2011, sem falar português, para estudar Medicina. De acordo com o convênio diplomático que permitiu o intercâmbio, ele tinha que aprender o idioma em sete meses. Caso contrário, seria mandado de volta ao seu país, onde se fala francês. A pressão era grande, mas ele conseguiu. Em sete anos no Rio, atingiu também as notas altas necessárias para ganhar uma bolsa que o ajudou a se manter financeiramente. No último mês, o togolês concluiu mais uma etapa: formou-se em Medicina pela UFRJ.

O vídeo de sua colação de grau e a foto do baile de formatura em que aparece em traje típico do Togo, utilizado apenas em ocasiões muito especiais, ganharam as redes sociais. Milhares de pessoas celebraram a conquista. No vídeo, um texto narrando a trajetória do estudante é lido antes dele se levantar para buscar o canudo.

— Gostei dos comentários porque vi que muitas pessoas negras se inspiraram, ficaram felizes com a minha conquista, por eu ter usado algo que representa a minha cultura dentro de um baile de gala — conta ele, que tem 26 anos.

Não foi fácil chegar ali. Os pais passaram dificuldades para manter o sonho do filho, o mais velho de quatro irmãos. Eles tiveram, por exemplo, que vender as alianças que usariam no casamento civil. Por mês, enviavam, quando dava, uma ajuda financeira. No segundo ano, Fleury conseguiu uma bolsa. Continuava difícil, mas ao menos o aluguel já estava garantido.

— Foi muito difícil conseguir pagar o ingresso para o baile e a colação. O total seria de R$ 15 mil. Mas paguei por volta de R$ 4 mil porque comprei o convite pro baile, não fui como um aluno que tem direito a valsa, outros convites, algumas áreas. Vendi mochilas que a minha mãe, que é estilista, fez para ajudar a pagar.

Medo e ameaças

Para além das dificuldades financeiras, Fleury, que agora quer se especializar em cirurgia geral e cirurgia plástica, teve de enfrentar um outro problema, que ele nem esperava encontrar no Brasil: o racismo. Vindo de um país majoritariamente negro, decepcionou-se ao ver que, no Brasil, mesmo com 55% da população sendo negra, as instituições não refletem isso. Defensor das cotas raciais nas universidades, passou a se engajar em movimentos estudantis e a participar de debates em prol da igualdade.

Em 2016, entrou no coletivo NegreX, que reúne estudantes negros de Medicina e médicos que lutam, entre outras pautas, contra as fraudes nas universidades e debatem a saúde da população negra.

— Eu era o único negro da minha turma. Uma das razões pelas quais escolhi vir para o Brasil é o fato de ter uma quantidade grande de pessoas negras. Acreditava que haveria negros em todos os patamares. Quando entrei na faculdade e em muitos outros espaços, percebi que não era assim. É uma realidade muito triste. Criou-se um preconceito que tira vidas.

Em julho de 2016, Fleury escreveu em um blog suas percepções sobre as relações raciais no Brasil. Ele relatou ainda a ocasião em que alunos de sua universidade gritaram para que ele voltasse ao seu país, afirmando que este seria a Angola — uma prova, diz, da falta de conhecimento dos brasileiros sobre a África. O texto lhe rendeu ameaças pela internet.

— É bom que ele fale disso porque nos ajuda, mas ficamos com medo — afirma Lionel Honfin, de 30 anos, natural do Benin, que divide a casa com Fleury. — Depois que sofri muitos episódios de racismo, pensei em deixar o Brasil, mas ele me incentivou a ficar.

O apoio de Fleury aos amigos tem ainda um aspecto gastronômico. O togolês, que tem um canal no YouTube, o Cozinhando na África com Fleury Johnson, cozinha para os colegas:

— Assim ele nos ajuda a matar a saudade de casa — elogia Lionel.

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