Decisão do STF sobre maconha é avanço relativo

Na origem, Gilmar Mendes defendeu a descriminalização do porte de qualquer tipo de droga para consumo próprio

FONTEO Globo, por Flávia Oliveira
Flávia Oliveira (Foto: Marta Azevedo/ Arquivo O Globo)

Movimentos é uma organização de jovens favelados e periféricos brasileiros, que atuam, via educação, arte e comunicação, no enfrentamento à violência, ao racismo, às desigualdades. Estruturaram-se sob a batuta de Julita Lemgruber (CESeC), uma das grandes pesquisadoras do país em segurança pública. No lançamento, em 2017, com a presença da vereadora Marielle Franco, assassinada no ano seguinte, participei de uma roda de conversa com a filósofa Djamila Ribeiro e o historiador Douglas Belchior. Quando o Supremo Tribunal Federal anunciou, na última terça-feira, que definiria a tese de repercussão geral do julgamento que descriminalizou o porte de maconha para uso pessoal, a primeira postagem que me saltou aos olhos na rede social foi da dúzia de moças e rapazes hoje à frente da iniciativa.

Jéssica, Karina, Isabelly, Sabrina, Thaynara, Ari, Ricardo, Natan, Gaby, André, Luiza e Ana Paula deram o papo. Retíssimo. “É histórico, mas não é o fim”, alertaram. “Principalmente se você for um jovem negro”, completaram. Imagino que, com meio sorriso e gosto amargo, esse grupo de brasileiros recebeu o veredito que diz respeito, sobretudo, a eles próprios. No Atlas da Violência 2024, lançado na semana passada, o Ipea dedicou capítulo inteiro a um conjunto de dados sobre drogas ilícitas, prisões e violência. Os indivíduos criminalizados como traficantes são, essencialmente, homens (86%), jovens (72% têm até 30 anos), de baixa escolaridade (67% não concluíram o ciclo básico) e negros (68%). Jovens e negros somam 53,9% dos réus processados. Têm gênero, cor, classe.

O Brasil avança quando a maioria do STF entende que o porte de maconha para uso pessoal deve ser caracterizado não como crime, mas como infração administrativa, sem consequências penais. Não é trivial ficar em liberdade, sem antecedentes criminais nem risco de reincidência. Contudo impossível não enxergar retrocesso entre o voto original do relator do Recurso Especial 635659, Gilmar Mendes, em agosto de 2015, e a redação final da Corte, anteontem.

Na origem, o ministro defendeu a descriminalização do porte de qualquer tipo de droga para consumo próprio, tal como fez Dias Toffoli nesta semana. Argumentou que o artigo 28 da Lei de Drogas contrariava a Constituição Federal por interferir nas garantias à intimidade, à vida privada e à autodeterminação, além de não assegurar os direitos à saúde e à segurança pública. Foi a partir dos votos dos ministros Edson Fachin, Luís Roberto Barroso, ora presidente do STF, e Alexandre de Moraes que, no ano passado, Mendes reviu a posição inicial e propôs a descriminalização somente da maconha, bem como a indicação de parâmetros para diferenciar usuário de traficante.

O colegiado estabeleceu que será presumido usuário quem adquirir, guardar, depositar ou transportar até 40 gramas de Cannabis sativa ou seis plantas fêmeas. Com base nos direitos à privacidade e à liberdade individual previstos no artigo 5º da Constituição, não há crime, mas infração administrativa sem consequências penais. Decidiu também que o critério valerá somente até o Congresso Nacional legislar sobre o tema. No Senado, já foi aprovada a PEC 45, de autoria do presidente da Casa, Rodrigo Pacheco, para criminalizar posse e porte de qualquer quantidade de droga ilícita, inclusive maconha.

A Corte instituiu a presunção “relativa” de uso. Assim, a autoridade policial não estará impedida de prender em flagrante por tráfico de drogas, mesmo para quantidades inferiores de maconha, quando houver elementos que indiquem venda, “como a forma de acondicionamento da droga, as circunstâncias da apreensão, a variedade de substâncias apreendidas, a apreensão simultânea de instrumentos como balança, registros de operações comerciais e aparelho celular contendo contatos de usuários ou traficantes”. Juízes, havendo prova suficiente nos autos, poderão classificar como usuários detentores de droga em quantidades superiores aos limites fixados.

O entendimento do Supremo não eliminou toda a subjetividade contida na atual Lei de Drogas. A consulta ao STF se deu, justamente, porque polícia, Ministério Público e juízes utilizam métricas e conceitos diferentes ao investigar, denunciar e julgar indivíduos de raça, nível de renda e origem diversos. O próprio ministro Alexandre de Moraes assinalou em seu voto que um jovem negro torna-se réu por tráfico com metade da droga que faz um branco rico ser considerado usuário.

A criminalização por raça e classe está escancarada no Atlas da Violência. Além de mais da metade dos réus serem jovens negros, segundo o Ipea, 85% dos processados por tráfico foram presos em flagrante — portanto sem investigação prévia. Conforme relato dos policiais, as abordagens foram motivadas por comportamento suspeito ou denúncia anônima. Quatro em cada dez réus foram alvo de busca domiciliar sem mandado judicial. Não é preciso grande esforço para adivinhar os territórios em que brasileiros são detidos por comportamento suspeito, de improviso, sem mandado de busca e apreensão. Em áreas abastadas é que não são. A decisão do STF é histórica, mas não suficiente para encerrar o assunto. Principalmente, para quem é jovem, negro, favelado. Atividade, cria!

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