Deixa a Elza Soares gingar, Feliciano

Não é todo dia que a história nos reserva acontecimentos deste porte. Elza Soares vinha fazendo um show emocionado no Sesc Pinheiros, na noite de quinta-feira (20 de março). Elevou a emoção em mais um grau ao cantar, rappeando, uma versão bem Elza para “Não É Sério” (2000), rock do Charlie Brown Jr., em homenagem a Chorão. Vinha ela de “o jovem no Brasil nunca é levado a sério”quando, de repente, a música virou do avesso e se transformou em algo que nem Chorão poderia supor se aqui ainda estivesse: um protesto contra o pastor evangélico e deputado federal Marco Feliciano (PSC-SP), alçado por jogos de poder que não compreendemos à posição de presidente da Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara Federal.

“Eu me sinto maltratada. Me sinto um pouco renegada. Cadê os direitos humanos? Somos negros. Somos gays”, Elza começou, referindo-se diretamente às renitentes manifestações de cunho racista e homofóbico por parte de Feliciano, seja como pastor deputado, até mesmo no impensável cargo no qual ele deveria defender – e não atacar – direitos humanos os mais variados.

De imediato, a plateia se levantou e passou a ovacionar Elza. “Fora, racista!”, ela comandou. “Fora!”, correspondeu a plateia. “Fora!, fora!, fora!”, repetiu a cantora, rappeando, como se o rock branco de Chorão fosse o samba-rap preto de Elza Soares. Como tem acontecido em ruas de diversas brasileiras desde que Feliciano sentou no trono inadequado, os espectadores presentes deliraram em protesto contra sua permanência. E Elza esmerilhou o assunto: “Será que ele sabe que a voz que ganhou a voz do milênio pela BBC de Londres é de uma negra, chamada Elza Soares? Sou eu. Será que ele não sabe que quem trouxe a Copa do Mundo para este país foram Pelé e Garrincha, negros?”.

O que negra Elza protagonizava era um desses raros momentos em que arte e política se tornam uma coisa só, e enriquecem um ao outro, bem longe de chatear a diversão como muito gosta de afirmar e repetir um desgastado clichê da crítica cultural comercial. O público demonstrou se divertir à beça com o protesto, e vice-versa.

Era só a quarta música do show Deixa a Nega Gingar, mas, se é caso de mirar a apresentação em perspectiva, antes e depois daquele momento mais exaltado, só uma conclusão é possível: Elza Soares é 100% política, direitos humanos e arte – sobretudo arte.

Já tornada histórica em sua voz, a canção imediatamente anterior à que (des)uniu Chorão e Feliciano foi “A Carne” (1998), parceria de Seu Jorge (na época à frente do grupo pop-reggae-soul-funk-etc. Farofa Carioca) e Marcelo Yuka (então cérebro do rap-reggae-rock consciente da banda O Rappa). Adaptado ao gogó de Elza, o refrão vira o forte e reto “a carne mais barata do mercado é a MINHA carne negra”. “Elza Soares é negra”, “a minha mãe é negra”, “a minha carne é negra”, ela acrescenta à canção, estimulando público apaixonado a repetir “negra”, “negra”, “negra”…

Antes ainda, ela já beliscara o racismo ancestral embutido em “Nega do Cabelo Duro” (1940), marchinha carnavalesca nada inofensiva coescrita pelo também jornalista poderoso David Nasser. Na versão de Elza, a mistura ganha versos tipo funk carioca como “eu sou negrinha/ eu sou gostosa/ o meu cabelo tá na moda”. Os cabelos alisados de Feliciano, neste outro contexto, ganham ares de tragédia, autopreconceito e automutilação. Aqui Elza, cabeluda encaracolada que só, é o anti(in)Feliciano. “Quando a gente é feliz, a gente não maltrata ninguém”, acrescentou mais adiante, autoelogiando a alegria que transmite mesmo presa à cadeira, com os movimentos (mas nunca a voz) limitados por uma cirurgia na coluna. “Respeitem uma mulher operada, gente”, ela brincou, ciente do trocadilho caro a travestis, transexuais e transgêneros.

Elza Soares lança álbuns de música desde 1960 – há inacreditáveis 53 anos. Enquanto o racismo estrutural desta sociedade operava para enquadrá-la na condição (supostamente) desvantajosa de mulher negra, o mercado musical fazia o mesmo com o(s) estilo(s) de sua voz: muito se tentou aprisioná-la unicamente sob o rótulo de sambista. Por vezes ela teve de obedecer, mas já faz tempo que isso não acontece – mais ou menos o mesmo intervalo desde o início do desmoronamento da indústria fonográfica como a conhecíamos. Democratizando-se o Brasil, Elza se pôs doidamente a se democratizar.

Deixa a Nega Gingar é a cristalização dos ventos de liberdade que Elza há tempos vem soprando sobre nós. Imobilidade física à parte, ela está livre para falar dos assuntos que quiser – música, música, música, racismo, racismo, racismo, machismo, homofobia, racismo, racismo etc. A liberdade, digamos, ideológica se reflete diretamente na liberdade musical. Elza adota um formato que já testara em 2004, no disco de samba eletrônico Vivo Feliz. A ideia ressurge aperfeiçoada e impactada por uma banda sensacional que inclui um músico negro no contrabaixo acústico (pode lhe parecer banal, mas quantas vezes você já viu um instrumentista negro empunhando esse pomposo instrumento?), um tecladista branco que a certa altura intromete deliciosa sanfona na receita e o sensacional DJ Muralha, que desmente o clichê de que DJs de música eletrônica não são músicos e se torna um dos focos luminosos do show, à custa de picapes e iPad.

Acalentado em eletrônica, o show de Elza transcende o samba e faz lembrar, em momentos distintos, atos como Pink Floyd, Prodigy, Radiohead. E termina num impressionante tecnocandomblé enriquecido por três ritmistas (negros), sob os sons de “Madalena do Jucu” (1989), de Martinho da Vila, “O Que É o Que É” (1982), de Gonzaguinha, e o samba-enredo de avenida “É Hoje” (1982). A eletrônica é usada a serviço da brasilidade, e isso é tão novo e quente quanto o entusiasmo irrefreável de Elza negra.

Todos no palco, exceto a dona do palco, são muito ou relativamente jovens. O contraste se acentua nas várias canções em que Elza chama a paraense Gaby Amarantos para secundá-la “Você é minha barra de chocolate, dá vontade de comer Elza Soares”, diz Gaby, antes de ambas cantarem juntas uma versão desacelerada de “Ex-Mail Love”. Um traço próprio da inventora do samba-jazz, de estar sempre ligada a cada momento musical que atravessamos, faz com que Elza reverencie a deusa profana pop-brega-MPB-indígena-etc.

Talvez Gaby seja a Elza de amanhã, e a experientíssima artista é generosa e inteligente emenxergar e sublinhar isso hoje, agora, sem demoras nem delongas. De certo modo, o tecnobrega da discípula é o que a matronaa sempre quis fazer – e faz – em sua cybergafieira, arrombando barreiras de gêneros (musicais, sexuais, raciais), preconceitos, intolerâncias, ignorâncias. Por tudo isso, Elza é o anti-Marco Feliciano, além de ser (e é bem bom que se diga isto quando ela está BEM viva) uma das maiores artistas (ainda muito vivas) da história da música brasileira.

 

Fonte: Yahoo

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