Dois cafés e a conta com Rodrigo França

Ator, autor e diretor destaca a importância do respeito à diversidade

por Mauro Ventura no O Globo

Coluna Dois Cafés e a Conta com Rodrigo França Fotos de Mauro Ventura

Como surge “O Pequeno Príncipe Preto”?

Nasce de um desejo do ator Junior Dantas. Nas peças da escola, ele sempre fazia escravos ou personagens subalternos. Um dia, aos 7 anos, pediu para interpretar o Pequeno Príncipe, mas a professora negou porque ele não era louro de olhos azuis. Ano passado, Junior me procurou com essa vontade, e resolvemos montar um espetáculo para desconstruir esses estereótipos. A peça fala de diversidade, amor, generosidade, empatia. Diz que você pode buscar tudo. Não é só para crianças negras. Qualquer um que sofra bullying vai se identificar, se enxergar no palco e se encorajar a passar por cima de toda questão que a coloque para baixo. A peça dá um repertório para crianças e jovens enfrentarem as adversidades da vida.

E a peça “Contos negreiros do Brasil”?

É um espetáculo-documentário dirigido por Fernando Philbert que desmistifica o mito da democracia racial brasileira. É uma adaptação do livro de Marcelino Freire. Faço a costura das histórias e ajudo a plateia a refletir. Misturamos estatísticas, vídeos, fotos e áudios com a biografia dos atores. Abre com a história de minha avó, que não era letrada. Ela trabalhou como auxiliar de creche por 35 anos numa escola de classe média alta na Zona Sul, sem nunca ter faltado um dia. Queria muito aprender a ler e escrever, e esse sonho foi negado dentro de uma escola. Sou educador muito por causa dela. Até quatro anos atrás, eu fazia muito texto clássico e musical. Mas comecei a ser identificado como ator de musical e aí decidi fazer um teatro mais político, sem ser partidário. Meu gerente de banco odiou, porque entretenimento paga bem melhor. Mas me encontrei, já que pude unir a arte à formação acadêmica.

Você já foi vítima de racismo?

Tá com tempo (risos)? É comum. Há seis meses, eu e oito atores fomos comemorar a conquista de patrocínio para uma peça. Num restaurante em Copacabana, a garçonete chegou a arrancar o cardápio da minha mão para dar a um casal branco. A gerente foi indiferente. Entrei em contato com a empresa e acabei chamado para capacitar os supervisores e os gerentes de toda a rede de restaurantes. No Brasil, o racismo é velado e também explícito. Quando começou a intervenção no Rio, pensei nos jovens negros que conheço e fiquei com medo. Fiz um post no Facebook com dicas para se protegerem nas abordagens. O jornalista Edu Carvalho e os youtubers Spartakus Santiago e AD Junior transformaram num vídeo que viralizou. Tive muito retorno de famílias negras que passaram as instruções para os filhos.

Fale de suas palestras em escolas públicas.

A maioria dos alunos de escola pública não se enxerga como negra. Acha que é branca. E, se é vítima de algum preconceito, se culpabiliza. Acredita que merecia porque não estava bem vestida, porque não é bonita. Tento desconstruir certos valores sociais. Projeto, por exemplo, fotos de negros e pergunto aos alunos o que significam. Mostrei uma imagem da escritora Conceição Evaristo e disseram “é feia”, “é faxineira”. Questiono padrões de beleza, falo sobre a importância de se ter um olhar mais diverso, digo: “Já repararam que a gente não se enxerga na banca de jornal, a não ser nas notícias de polícia?” Apresento trechos de filmes, capas de revistas, personagens nacionais e internacionais. No fim da apresentação, a reação é ótima: “Eu tinha vergonha de me declarar como negra.” Passam a ter mais orgulho. Esses jovens precisam se identificar com personalidades negras.

E sua luta contra a intolerância religiosa?

Fiquei horrorizado ao ver o vídeo em que padre Fábio de Melo trata de forma desrespeitosa as religiões de matriz africana. Procurei, com o babalaô Ivanir dos Santos, o advogado Ricardo Brajterman, e ele notificou o padre para retirar o vídeo do ar. Apanhei muito dos fãs de Fábio, recebi várias ameaças pela internet. Mas o padre se desculpou pelo que disse e visitou com Ivanir um centro espírita que foi invadido e vandalizado. Se a perseguição fosse contra qualquer outro segmento religioso, eu me manifestaria da mesma forma. Em tudo que faço tento mostrar a importância do respeito à diversidade, do amor ao diferente, da coletividade, do apreço aos mais velhos, da ancestralidade. Para eu estar aqui com você, tenho que reverenciar todos os que estão lá atrás.

O militar Nelson e a funcionária pública federal Vera Lúcia tiveram quatros filhos. Os trigêmeos Rodrigo, Fábio e Nelson, e o caçula Bruno. Fábio é professor e gestor de escola de samba. Nelson é PM. Bruno é dono da marca de roupas Matriz Africana. E Rodrigo? “Sou muita coisa”, diz ele, de 40 anos, nascido na Penha. Artista plástico, aos 7 anos já fazia autorretratos e outras pinturas figurativas. Aos 12, entrou para a Oficina de Maria Teresa Vieira. Participou de coletivas e individuais no Brasil, nos EUA e em Portugal. Rodrigo tem três faculdades: formou-se em Ciências Sociais, Filosofia e Normal Superior. Vai retomar o doutorado sanduíche em Direitos Humanos Fundamentais que faz na Universidade de Wisconsin (EUA). Professor há 25 anos, foi diretor e coordenador de vários cursos e escolas. Hoje faz palestras na rede pública. Trabalhou 12 anos na PM, como pesquisador e professor de três disciplinas: Sociologia Criminal, Sociologia Jurídica e Ética e Direitos Humanos. Ele é sócio, junto com a chef Maria Julia Ferreira, da Angurmê, bufê e food-truck de culinária afro-brasileira em Vila Isabel. Mas a principal atividade de Rodrigo, à qual se dedica há 27 anos, é o teatro, como ator, diretor ou autor. Calcula ter feito uns 50 espetáculos, cerca de 30 deles com a companhia de Antônio Pedro. Neste momento, participa de “Contos negreiros do Brasil”, no Sesi Jacarepaguá. A peça, prevista para ficar em cartaz um mês e uma semana, está em temporada há um ano. Rodrigo é ainda autor e diretor do infantil “O Pequeno Príncipe Preto”, que estreia sábado no Glauce Rocha, com o ator Junior Dantas no elenco. Tem mais: foi um dos idealizadores do evento Segunda Black, que ganhará nova edição a partir de 6 de julho. “Somos um coletivo de 13 artistas que percebeu que precisava se encontrar, mostrar seu trabalho, trocar.”

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