Escrever as ruas

(Foto: Lucíola Pompeu)

Quem goleou foi o Supremo Tribunal Federal, no último 10 de junho. O Neymar do julgamento foi a ministra relatora, Cármen Lúcia, ao relembrar que, segundo a Constituição Brasileira, Cala boca já morreu. Quem manda na minha boca sou eu. Perderam as biografias chapas-brancas e parentes que se intitulam proprietários do morto biografado.

Por  Fernanda Pompeu,do Yahoo

Respeito o trabalho árduo do escritor biógrafo que, muitas vezes, dedica anos à pesquisa e redação da vida de um outro. É evidente que me refiro aos biógrafos sérios e talentosos. Não entram na minha consideração fofoqueiros e urubus da vida alheia. O fato: aprendo muitíssimo com as grandes biografias, pois elas extrapolam a vida pessoal do biografado ao narrar e iluminar os contextos histórico, político, social, cultural de uma época.

Com minha pena curta e ligeira de cronista, não me imagino abraçando um trabalho de longo fôlego. Mas se eu fosse biografar, escolheria uma rua. Por exemplo, a paulistana Avenida Angélica – que teve residências de fazendeiros e importante circulação de artistas. Hoje, sobraram poucos casarões e subiram dezenas de prédios. Eles abrigam agências bancárias, clínicas, laboratórios médicos. Mas a Angélica segue linda, mantendo sob sua estrela a maravilhosa Praça Buenos Aires.

Se fosse uma rua carioca, biografaria a Rua do Ouvidor, no centrão. Pois teria a chance de voltar ao século 19 e começo do 20, para tratar da vida de escritores, jornalistas, editores. Quando passo pela estreitinha Ouvidor, quase esbarro no Machado de Assis, Artur de Azevedo, Lima Barreto. Mas também poderia escolher a Rua Conde de Bonfim, na Tijuca, a fim de narrar a minha infância sob a trilha sonora de cigarras estonteadas com os entardeceres.

Ou qualquer outra rua no Recife, Curitiba, Belo Horizonte, Manaus, Corumbá. Isso porque todas elas contam dos seus pioneiros, forasteiros, sonhos dos finados e novíssimos moradores. Nelas, são personagens o bar, a padaria, a quitandinha, o ponto de ônibus. De igual jeito que na biografia de pessoas, a das ruas depende da qualidade da pesquisa e da redação. Não é a rua em si quem determina a relevância, mas a habilidade da prosa do autor.

Faz sete anos moro na graciosa Sagarana. Uma ruazinha na Vila Madalena. Assisti a várias transformações. Casas reformadas, nascimento e morte de cachorros, roubos, gestos de amizade, brigas de vizinhos. Aos poucos, vou recolhendo informações e impressões. Talvez um dia escreva sobre a minha rua, porque tenho aprendido a amá-la. Toda biografia é uma prova de amor.

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