Estado que fuzila inocente abre mão de seu papel na segurança

Valentes para atacar bandidos, políticos não têm coragem de reconhecer tragédia

por Bruno Boghossian no Folha de São Paulo

Carro em que estava o músico Evaldo Rosa dos Santos – Fabio Texeira/Reuters

Primeiro, o Exército fuzilou o carro de uma família no Rio. Foram mais de 80 tiros no Ford Ka em que estavam Evaldo Rosa dos Santos, a mulher, o filho, o sogro e uma amiga. Depois de matarem o músico, os militares mentiram. Alegaram que só revidaram um ataque de criminosos, matando “um dos assaltantes”. Por fim, consumada a tragédia, os governantes decidiram ficar calados.

Um Estado que encoraja o bangue-bangue e atira oito dezenas de vezes contra um inocente abriu mão de seu papel na segurança pública. A morte de Evaldo é mais um sintoma das décadas de fracasso no combate ao crime e à violência, turbinadas pelo estímulo à barbaridade das execuções extrajudiciais.

Os políticos que incluíram o incentivo à matança em seus programas de governo agora preferem o silêncio. Aqueles que soam valentes para dizer que a polícia “cancela CPFs” ou manda bandidos “para o cemitério” em suas operações não tiveram coragem de reconhecer o desastre.

Wilson Witzel, o governador que manda “mirar na cabecinha”, disse que não cabia “fazer juízo de valor ou tecer crítica”, porque sua Polícia Militar não estava envolvida no caso.

Luciana Nogueira, viúva do músico Evaldo Rosa dos Santos; o carro em que estavam foi atingido por mais de 80 disparos, no Rio

Jair Bolsonaro também fingiu que não era com ele. Jornalistas perguntaram três vezes ao porta-voz do Planalto o que o presidente achava do episódio. Nas três vezes, ele só respondeu que o governo esperava a conclusão do inquérito para que “tenhamos o caso totalmente elucidado”. Sobre o fuzilamento em si, nada.

O principal plano de políticos que se consideram rigorosos com o crime é distribuir licenças para matar. Num dia, eles sorriem ao condecorar militares e policiais que acertaram bandidos. Noutro, eles se recusam a encarar os abusos e erros cometidos sob essa autorização.

Mortes em conflito deveriam ser tratadas como exceção, não como regra. Governantes que pregam o fuzilamento como política de segurança precisam saber que o assassinato de um inocente na frente do filho de sete anos pode estar dentro do arco de consequências de seus métodos.

+ sobre o tema

PMs não citaram ação social em depoimento sobre morte de jovem na Providência

Dois PMs investigados pelo homicídio do jovem Rodrigo Cerqueira,...

Negros são representados em manual de segurança da PM como criminosos

Um material de divulgação distribuído pela Polícia Militar paulista...

Philip Anselmo: Por que Black Power pode e White Power não pode?

Por que podemos enaltecer o Black Power e não...

“Cem negros valem um branco”

A figura do malandro é mais um dos fatores...

para lembrar

O que o sexismo de Bolsonaro nos diz sobre submissão de primeiras-damas

Sobraram no Brasil hashtags de apoio à francesa e...

Nota oficial de Ivanir dos Santos: O que aprendi com a tolerância

Como professor de História Comparada, aprendi que quase 400...

Miscigenação entre brancos e negros é, na verdade, genocídio?

Frase exibida por manifestantes na 14ª Marcha da Consciência...
spot_imgspot_img

OAB suspende registro de advogada presa por injúria racial em aeroporto

A Ordem dos Advogados do Brasil (OAB-MG) suspendeu, nesta terça-feira (25), o registro da advogada Luana Otoni de Paula. Ela foi presa por injúria racial e...

Ação afirmativa no Brasil, política virtuosa no século 21

As políticas públicas de ação afirmativa tiveram seu marco inicial no Brasil em 2001, quando o governador do Rio de Janeiro Anthony Garotinho sancionou...

Decisão do STF sobre maconha é avanço relativo

Movimentos é uma organização de jovens favelados e periféricos brasileiros, que atuam, via educação, arte e comunicação, no enfrentamento à violência, ao racismo, às desigualdades....
-+=