Festival Verve de Arte Diaspórica

A arte como cura e tecnologia ancestral para atravessar a pandemia e chegarmos vivos.

Era auge da pandemia em 2020, horizonte assustador, nebuloso para o mundo, e nós fomos encurralados por uma pergunta: Como fazer arte à distância, sem dinheiro, sem estrutura? Logo a arte, feita de conexão e troca.  Foi preciso ter força no Ori, a cabeça, e num momento de inspiração, entre papéis, telas e letras miúdas de editais, perguntei: 

 “Edvan Mota, por acaso você tem alguma ideia extraordinária na cabeça? ”. Ele tinha. Estratosférica. Foi conversa e escrita noite adentro (o rapaz tem hábitos noturnos), pela tela do WhatsApp, ele falando, eu ouvindo, coloquei tinta em seus pensamentos visionários e fertilizei com minha água. Só Duany Santos para fazer virar roteiro, a cabeça do rapaz é um mundo vasto, cheia de códigos, timbres e notas, ele é músico, tocador ilustre, que faz o tambor falar.  A ideia: por o tambor no centro, dar amor, digo, tambor e novos arranjos para composições musicais de vários artistas pretos, meio mundo de gente chavosa, desaguando na curadoria odara que ele fez, trazendo nada menos que  as vozes de Bia Doxum, Luana Bayô, Camila trindade, Marabu, Ana Be, Daniel Yoruba, Pai Pingo,  com singulares cantigas nagô, Pai Nil, Pai Ney do Oxossi nos tabaques, temperados pelo cavaquinho  de Levi Keniata, violão e arranjos de Ravi Landiz,  luxuoso trompete de Atila Silva,  bateria de Matheus Marinho.  “A dança é a resposta imediata ao tambor, disse Duany Santos”, e assim foi.   Firmino Pitanga, da cia Treme Terra e Kely Anjos, ambos com décadas de dança negra contemporânea, deram uma aula de história e traduziram com maestria a relação do tambor, esse “distinto senhor”, como diz o percussionista Edvan Mota. O tambor é precursor, ele está em tudo, disse Kely Anjos. É verdade.

 No meio do caminho tinha um lockdown.

E tudo aconteceu porque no meio do caminho tinha um lockdown. Sem caminho para cruzar os extremos de SP como era de costume, abrimos uma outra via. Guiados pelo poder do mais poderoso wi fi de todos os Tempos, o tambor. Atabaques, Djembês, talking drum, Agogô, cuíca, convocaram cavaquinho, cuíca, violoncelo e as pick ups  d DJ Negrito, para as origens. Novos arranjos atualizando o software, para conectar o agora com as origens, e fazer presente a sofisticada pulsação do tambor. Nada mais afrofuturista, já que estarmos vivos hoje, é um futuro sonhado por quem veio antes de nós. Fazer arte também. 

Não podia fazer festa 

No dia 20 de novembro de 2020, uma sexta-feira, com a benção de Oxalá, chegou a notícia.  A ideia extraordinária, tinha sido aprovada no edital Aldir Blanc. Não podia fazer festa, fizemos Festival. Tá certo, é on-line, a gente queria pele, foram meses de ensaio, testes de COVID, mascara, outros lockdonws vieram, mas baixamos o download ancestral, atravessamos a escassez, o medo, o vírus, as perdas, altos e baixos, encontramos a arte, vocês precisam ver como ficou primoroso. Luana Bayô cantando Kalunga é de arrepiar a pele, abre caminho para a travessia. Bia Doxum trouxe um balaio de amor, Camila trindade afinou os acordes dos nossos corações, Marabu na ginga entre o samba e o funk, lembrou que nossos sonhos miúdos são como diamantes que brilham à luz do luar, Ana Be, Gil da ocupação Ermelino Matarazzo, trouxeram rima e poesia. Fizemos o download extraordinário, que só se deu porque além da internet, a tecnologia ancestral nos valeu. Porque tivemos tambor, não ficamos desarranjados. O wi fi mais poderoso de todos os tempos bateu no extremo da Leste, chegou aqui no Centro de São Paulo, no meio do meu peito, no plexo aberto, e ferveu, é FERVE, o festival da Verve que chega com as bênçãos de Oxalá, dia 11 de agosto com seis dias, lançamento de disco e performance dançada. 

Foto: Felipe Romão

Firmamento

É nome de batismo do disco que será lançado no FERVE, em par e passo com a dança, num vídeo enfeitiçado, coreografia e trilha sonora para abrir caminhos. Traduz um céu, uma constelação de estrelas, iluminação de Eduardo Cabral, dons e axés, música de Edvan Mota, cura em canção que traz ao fundo um toque antigo como as águas do mar, com encantamento e magia de cordas e trompete, dançado por Leandra Silva, que vos escreve, de alma lavada, ao ver tantas cabeças firmes em meio à tempestade.  Contra o sistema, nascemos vacinados. Isso é tecnologia ancestral das mais refinadas. Salve, o Tambor. Senhor Tambor que acordou o palco do CRD, centro de referencia da dança em São Paulo. 

 O barco

 Cia Verve de arte negra. Feito de gente preta até o osso. A produção executiva é de Duany Santos, as artes de Poliana Rodrigues, assessoria comunicação de Isadora Santos, curadoria de Edvan Mota, Marina Alexandre na gestão das finanças, Raquel Costa na contenção suporte, assistência social na hora das crises mais agudas, e Leandra Silva, dançando e pilotando a nave. O processo envolveu mais de 30 pessoas na técnica. É profunda nossa gratidão. Assim cantou Marabu. Assim que é.  Vocês vão gostar de ver.  Passem perfume atrás da orelha. Arrastem o sofá. 

Mini Bio 

Leandra Silva é Oloya. Fundadora, diretora e coreógrafa da Cia VERVE de Arte Negra. Atua na criação e condução de processos artísticos a partir de singulares tecnologias ancestrais. É graduada em jornalismo pela UFBA, e membro do programa de Aceleração do Desenvolvimento de Lideranças Negras Femininas, pelo Fundo Baobá.

** ESTE ARTIGO É DE AUTORIA DE COLABORADORES OU ARTICULISTAS DO PORTAL GELEDÉS E NÃO REPRESENTA IDEIAS OU OPINIÕES DO VEÍCULO. PORTAL GELEDÉS OFERECE ESPAÇO PARA VOZES DIVERSAS DA ESFERA PÚBLICA, GARANTINDO ASSIM A PLURALIDADE DO DEBATE NA SOCIEDADE. 

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