“Geledés é uma entidade comprometida com a transformação social”, diz embaixador do Brasil no Quênia

Organização promoveu evento paralelo à conferência da ONU em Nairóbi para discutir emancipação econômica da população afrodescendente

Em parceria com a Embaixada do Brasil no Quênia, Geledés – Instituto da Mulher Negra promoveu nesta sexta-feira 10, o evento “Emancipação Econômica da População Afrodescendente: Desafios e Perspectivas do Futuro”, em Nairóbi. O evento correu paralelamente à Conferência da Sociedade Civil “Moldando um Futuro Global e Sustentável Progresso”, que aconteceu na capital queniana. 

Participaram do evento de Geledés o embaixador do Brasil no Quênia e representante do Brasil para as Nações Unidas em Nairóbi, Silvio Albuquerque, o representante da Comunidade Baha´i Internacional para a ONU, Carl Murrell, a chefe da Seção de Políticas de Práticas Urbanas da ONU-Habitat (Programa das Nações Unidas para Assentamentos Humanos), Shipra Narang Suri, a secretária executiva da Convenção das Nações Unidas sobre Diversidade Biológica, Elizabeth Maruma Mrema e Letícia Leobet e Iradj Eghari, ambos de Geledés

O encontro de Geledés debateu a emancipação econômica da população afrodescendente, governação global inclusiva, construção de coligações impactantes entre múltiplas partes interessadas para defender, agir e impulsionar grandes reformas propostas na linguagem de consenso do Pacto para o Futuro. 

Após o evento, o embaixador Silvio Albuquerque concedeu esta entrevista a Geledés em que ele ressalta a trajetória da organização na esfera internacional desde a Conferência de Durban até as últimas ações em fóruns das Nações Unidas, com análise de impactos para a população negra não apenas do Brasil, mas também no mundo. 

“O Estado brasileiro tem muito a se beneficiar do protagonismo de Geledés internacional, no diálogo interno, porque é uma entidade que jamais se propôs a ser apenas um think tank; é uma entidade comprometida com o ativismo político, com transformação social”, disse ele.  

O embaixador também destacou as intervenções de lideranças africanas desejosas em conhecer a luta que se trava no Brasil para o empoderamento da mulher negra brasileira. 

A conferência da ONU em Nairóbi foi um pontapé para as conversações que culminarão na Cúpula do Futuro, a ser realizada em 22 e 23 de setembro, em Nova York, onde deverá ser promulgado o Pacto para o Futuro. 

Geledés – O Itamaraty e Geledés- Instituto da Mulher Negra tem uma relação histórica que remete aos tempos da Conferência de Durban, na África do Sul, e contemporânea, como nesta conferência. Como o senhor analisa a atuação internacional da organização e seus impactos na sociedade civil brasileira?

Embaixador Silvio Albuquerque – O processo de Durban representa o ponto de ruptura definitivo com uma retórica que perdurava por décadas: o mito que existia no Brasil uma democracia racial perfeita, exemplar.  Então o processo preparatório para a Conferência (de Durban) foi didático e politicamente transformador, não apenas para o Itamaraty, mas para o Estado brasileiro como um todo. A minha experiência pessoal de um então jovem diplomata que fez parte da preparação para Durban, o que tenho escrito e dito em palestras, foi que graças ao movimento negro brasileiro o Estado brasileiro superou uma visão congelada, equivocada no campo das desigualdades sociais, e passou a assumir um papel protagonista nos grandes temas ligados ao combate ao racismo e à promoção da igualdade no plano multilateral, tanto regional quanto global. 

Eu não consigo enxergar entidade mais simbólica inserida historicamente nesta transformação do que Geledés – Instituto da Mulher Negra. Sueli Carneiro marcou e marca profundamente a forma como passamos a enxergar a interseccionalidade entre gênero e raça no esforço de enfrentamento à discriminação de mulheres afrodescendentes no Brasil e na América Latina. O protagonismo de Geledés antes e depois de Durban é mais do que evidente, não apenas na interlocução interna, dentro do Brasil, mas também regional, na América Latina e no Caribe, e no mundo chamado diáspora africana. Então o Estado brasileiro tem muito a se beneficiar do protagonismo de Geledés internacional, no diálogo interno, porque é uma entidade que jamais se propôs a ser apenas um think tank; é uma entidade comprometida com o ativismo político, com transformação social.  Daí acho que ela tem uma porta aberta, uma ponte direta com a vida real de mulheres negras e com a necessária transformação de mentes e políticas públicas e privadas no empoderamento da mulher negra. 

Geledés – Existe um simbolismo na participação de Geledés nesta conferência em Nairóbi, uma vez que é a única organização da sociedade civil brasileira do Sul Global a ter essa representatividade. Qual a importância de uma organização, fundada e liderada por mulheres negras, estar em um país africano numa conferência da ONU deste porte?

Embaixador Albuquerque – Sobre Geledés, esta entidade de forte simbolismo a que me referi, participar de uma conferência tão importante das Nações Unidas que reúne ONGs do mundo inteiro, na África, mais especificamente na África Oriental, no Quênia, é extraordinário. Isso porque há um grande desconhecimento de especificidades do que é o Quênia, do que é a África Oriental, e do que é o Brasil para os dois lados do mundo. Ou seja, o Oceano Atlântico nos aproximou, para bem ou para o mal, da África Ocidental, mas a África Oriental, banhada pelo Oceano Índico, tirando Moçambique pelos laços linguísticos e culturais, ainda é uma grande desconhecida. 

Ao longo do evento do qual estamos participando, houve uma série de intervenções de lideranças africanas, do Quênia, muito interessadas em conhecer melhor a luta que se trava no Brasil para o empoderamento da mulher negra. Eu diria que a presença do Geledés aqui, com uma força retórica, substantiva e política extraordinária, foi transformadora.  A (organização) apoia as ações de política externa do Brasil, nesta parte da África, sobretudo no campo da promoção da igualdade racial e dos vínculos entre as temáticas que discutíamos aqui no campo ambiental, dos assentamentos humanos, lidando com uma crise climática e seus efeitos vários, e (apontando) quais são as vítimas preferenciais dos feitos dessas crises climáticas. 

Geledés proporcionou aos interlocutores que aqui estão uma visão múltipla e diversificada de como a mulher brasileira negra tem enfrentando esses problemas que são prementes da ordem doméstica e internacional contemporânea.   

Geledés – A conferência é parte de um processo para se alcançar feitos maiores na Cúpula do Futuro. Neste sentido, o que se pode esperar desta cúpula e como está este processo em relação à situação da população negra, em especial das mulheres afrodescendentes?

Embaixador Albuquerque – Sobre a Cúpula do Futuro, a nossa perspectiva brasileira é que se discuta uma reforma na arquitetura de poder mundial. O Brasil entende que este não é um tema novo, sobre o qual temos tratado no plano diplomático multilateral há algumas décadas, mas chegou-se a um ponto que, com conflitos armados e número crescente de pessoas que não mais acreditam no poder das Nações Unidas de lidar com as circunstâncias reais de suas vidas, tudo isso combinado, faz com que a convicção do Estado brasileiro seja muito sólida no sentido de que a realidade atual reflete um mundo do passado, do pós- Segunda Guerra Mundial, com estrutura de poder congelada de modo a impedir que a ONU tenha efetividade em suas ações. Então, o que o Brasil busca, e isto está refletido em nossa presidência rotativa do G-20 e também como tema relevante da Cop-30, em Belém, são as reformas do sistema multilateral das Nações Unidas incluídas no Pacto do Futuro para levar a uma organização maior, no sentindo de abarcar temas mais relevantes, mas que seja, acima de tudo, mais eficaz e eficiente na distribuição dos recursos financeiros internacionais, na reforma do Conselho de Segurança Nacional, sobre o qual o Brasil tem interesse, e também nos meios de reparação de injustiça histórica praticada contra África, América Latina e outras partes do mundo. 

Então, o papel de Geledés e entidades da sociedade civil que lutam pela igualdade racial e pela promoção e empoderamento das mulheres e homens negros é de ser aquela voz na consciência dos Estados membros, como Geledés tem feito aqui nesta conferência, para tirá-los de uma zona de conforto em que se encontram, sobretudo os países desenvolvidos que pertencem ao Conselho de Segurança, para que compreendam que a mudança que se busca aperfeiçoa a legitimidade da organização, eleva seu grau de democratização e permite que seja eficaz na luta contra os desafios que a população afrodescendente tem enfrentado. 

Geledés – Em sua fala no evento de Geledés, o senhor menciona a intenção de que o Pacto do Futuro se comprometa a intensificar os esforços para combater o racismo, todas as formas de discriminação, a xenofobia e fenômenos relacionados; fala ainda em capacitar mulheres e meninas vítimas de racismo para que possam exercer plenamente os seus direitos em todos os domínios. De que forma acredita que isso possa acontecer?

Embaixador Albuquerque – O Pacto para o Futuro busca ser o principal legado do atual secretário das Nações Unidas deixará após o fim de seu mandato. Mas muito mais do que isso é uma oportunidade da sociedade civil internacional de apresentar propostas concretas para a transformação de uma ordem internacional vista por muitos como inadaptada ao mundo contemporâneo. Ou seja, o congelamento da arquitetura de poder mundial, produto de uma realidade de 1945, provocou consequências nocivas contra a efetividade da própria organização ao lutar contra fenômenos que afetam a vida real das pessoas e uma das dimensões que eu quero apontar é justamente o combate ao racismo, à discriminação racial. Como ex-membro do Comitê pela Eliminação da Discriminação Racial das Nações Unidas, eu sei bem o quão importante é ter uma organização das Nações Unidas comprometida com o aquilo que está na Carta, na Declaração Universal dos Direitos Humanos, e na Convenção Internacional de 1965 de eliminação de todas aa formas de discriminação racial. As grandes barreiras que são impostas para que a ONU avance a cumprir seu papel que se espera refletido e fortalecido pelo Pacto do Futuro é justamente cumprir aquilo que está escrito em sua própria história; escrito em seu documento fundador. É preciso que não cometamos o equívoco de enxergar o princípio maior da Carta das Nações Unidas que é a promoção da paz e da segurança internacional. É um tema, um valor, um princípio importante? Evidentemente que sim, mas se perdemos a perspectiva da promoção e da prevalência da dignidade humana e a partir daí extraímos os valores, os princípios e as políticas necessárias ao combate da discriminação racial e a promoção e da igualdade e do empoderamento de homens e mulheres negros, perdermos a perspectiva do que realmente a ONU significa. As vozes da sociedade civil, as vozes do movimento negro, as vozes daqueles que jamais são ouvidos em fórum de maior relevância merecem ser ouvidos neste momento. 

Tenho para mim que este evento que se realiza agora em Nairóbi tem maior importância, porque se realiza na África, no Quênia, no Sul Global e oferece às Nações Unidas e seus Estados membros uma perspectiva inovadora, porque aqui estão parte daqueles que sofrem diretamente os efeitos mais nocivos de políticas públicas no plano internacional que não focam necessariamente na vida real das pessoas. Aqui tenho ouvido relatos, depoimentos de jovens, que clamam por espaço e voz para que possam influenciar nas decisões dos Estados. A minha expectativa é muito grande em relação ao Pacto pelo Futuro. Acho que temos uma oportunidade que não podemos desperdiçar de que as vozes negras sejam ouvidas e que as vozes negras possam influenciar o rumo do documento final. 

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