Lembrar Luiza Bairros é reafirmar a relevância das lutas por democracia

Luiza Bairros foi uma intelectual ativista que teve muito o que dizer e disse. Mais do que isso, destacou-se por transformar em ações sonhos de justiça e liberdade compartilhados entre pessoas irmanadas na luta contra o racismo e o sexismo dentro e fora do Brasil. Luiza nasceu negra em Porto Alegre (RS) em 27 de março de 1953 e ali se tornou uma bem-lembrada na terça-feira de 12 de julho de 2016. Entre uma data e outra, viveu a maior parte de sua história na cidade de Salvador (BA) até mesmo quando não estava lá.

Há seis anos, quando o Brasil vivenciava a construção do golpe que retiraria Dilma Rousseff da Presidência, militantes de todo o país se dirigiram à Assembleia Legislativa da capital gaúcha para reverenciar a vida de uma de nossas maiores. Naquele momento, eu me questionava: quais condições as próximas gerações terão para dimensionar a relevância histórica de uma mulher como Luiza Bairros?

Nos telejornais, obituários ligeiros destacavam o fato de ela ter sido ministra da Seppir (Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial), entre 2011 e 2015. Mas não associavam a gestão de Luiza a conquistas marcantes para a democracia brasileira. Entre as possibilidades, estariam o reconhecimento da constitucionalidade das ações afirmativas pelo STF (Supremo Tribunal Federal) e a aprovação das Leis n. 12.711/2012 e n. 12.990/14, no Legislativo, por meio das quais se instituíram as cotas para o ingresso de pessoas negras e pobres no corpo discente das universidades públicas federais e nos cargos do serviço público federal.

As elaborações e disputas políticas no ativismo, sobretudo desde o MNU (Movimento Negro Unificado), por meio das quais ela ocupou postos em órgãos internacionais – a exemplo do Pnud (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento) e do Dfid (Departamento de Desenvolvimento Internacional do Reino Unido) – também não foram suficientes para que ela ganhasse mais alguns segundos no horário nobre. Não havia espaço, portanto, para reconhecer a relevância de sua atuação para a construção dos movimentos negro e feminista da atualidade.

Como observado pela comunicóloga e jornalista Mara Karina Sousa-Silva, que atuou como assessora de comunicação da Fundação Cultural Palmares, “naquele momento, a imprensa corporativa ainda enquadrava os sujeitos e agendas da luta negra tão somente como personagens da política do governo do PT”. Isso talvez explique por que encontramos poucos registros das palavras-chave “Seppir” e “Luiza Bairros” nas edições impressas de jornais como a Folha de S. Paulo, o Correio Braziliense e O Globo entre os anos de 2010 e 2016, período de maior cobertura jornalística. O levantamento feito na Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional e nos acervos virtuais dos periódicos sediados em São Paulo e no Rio de Janeiro revelou os seguintes números. Para a palavra Seppir:

  • Folha de S. Paulo: 11;
  • Correio Braziliense: 69;
  • O Globo: 74.

Para Luiza Bairros:

  • Folha de S. Paulo: 32;
  • Correio Braziliense: 62;
  • O Globo: 104.

A julgar pela timidez desses números, alguém que no futuro tente compreender o trabalho realizado por Luiza Bairros poderá ficar com a impressão de um certa irrelevância caso não atente para como o racismo se fazia um elemento central da gestão pública e da definição de padrões de noticiabilidade no início do século 21. Para uma análise mais sofisticada terá que se valer de muitas outras fontes que neste momento nem mesmo estão em arquivos públicos. por um lado, isso nos convoca a nos posicionar sobre a maneira como esse padrão tem se alterado e/ou se mantido nos veículos de comunicação; por outro, ilumina a relevância de iniciativas de preservação da memória de segmentos negligenciados nas narrativas hegemônicas sobre o Brasil.

Em anos recentes, as demandas pela preservação institucionalizada das memórias de ativistas e organizações negras têm se intensificado e ganhado forma. Apontam para caminhos de superação do costume de esvaziamento da agência histórica da gente negra no Brasil o trabalho feito por:

Para essas iniciativas serem incorporadas ao nosso repertório de lugares imprescindíveis para a reflexão sobre a história nacional, as experiências negras ao longo do tempo precisarão ser assim entendidas. Trata-se de uma experiência a ser encorajada como prática do tempo presente, algo impulsionado pela garantia de espaços para o racismo e o sexismo serem abordados a partir dos termos em que se fazem marcantes no agora: estrutural, cotidiana e constantemente, mesmo que incapaz de anular a humanidade dos sujeitos discriminados e interditados por essas violências.

A título de exemplo de como a sociedade brasileira poderia ter aproveitado mais intensamente da sabedoria de Luiza Bairros, encerro esta minha contribuição à coluna Presença Histórica com algumas palavras dessa pensadora negra ditas a mim numa entrevista em seu gabinete na Esplanada dos Ministérios, em Brasília, em 2013. São mostras dos ensinamentos de alguém que formou muitos e muitas das pessoas que têm dado continuidade às lutas por democracia neste país.

Desafios da gestão pública

A conquista de um espaço dentro da agenda governamental tem sido um desafio permanente desde a criação da Seppir, em 2003. Obviamente, quando nós chegamos aqui, após oito anos de existência da Secretaria, muitos ministérios já trabalhavam com a questão da igualdade racial. Entretanto, faltava um compromisso mais institucionalizado em relação ao que cada ministério deveria fazer de forma consistente dentro do governo. Isso não era consequência de um trabalho não feito até aquele momento. Na verdade, isso diz sobre a dimensão mais profunda do racismo, sobre as resistências ao combate do racismo no Brasil. Setores dentro e fora do governo percebem que o enfrentamento do racismo gira em torno de disputas de poder. Assim, deslocar determinados interesses, determinadas formas de pensar e até mesmo certos privilégios estabelecidos pelo racismo na sociedade brasileira ao longo do tempo ainda é uma tarefa extremamente difícil.

Movimentos Negros

O ambiente dos movimentos negros passou por mudanças consideráveis nos últimos anos. Partiu-se de um contexto onde predominavam as entidades negras de caráter geral e se chegou a esse momento que vivemos hoje com mais intensidade, no qual os diversos sujeitos negros foram acomodando as suas respectivas organizações políticas de diferentes maneiras. O que chamamos de Movimento Negro é algo formado por movimentos quilombolas, movimentos de afirmação da ancestralidade africana, movimento de jovens, de mulheres e até mesmo profissionais, como é o caso dos pesquisadores negros, dos especialistas em saúde, dos jornalistas e por aí vai. Há atualmente um quadro muito mais complexo, à medida que essas diversas identidades vão se organizando politicamente.

Educação Antirracista

O que a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB), a partir da Lei n. 10.639, modifica, ou melhor, pede para o Brasil modificar é a maneira como ele equilibra as matrizes culturais que formaram o país. Ela está dizendo que a matriz africana tem de ser equiparada à europeia. Só que ninguém pode achar que uma mudança de perspectiva das autoridades educacionais vai fazer isso vai acontecer imediatamente. Na verdade, implementar ou não a lei remete a uma disputa do ponto de vista de valores e de significados profundos da formação do Brasil. É isso que a Lei está pedindo. Quando eu olho por esse ponto de vista, eu acho até que avançou. Pensando por esse lado, não era para ter acontecido absolutamente nada. Mas avançou de que maneira? De uma maneira que eu considero absolutamente positiva. Professores e professoras pelo Brasil inteiro tomaram essa tarefa nas mãos e utilizaram suas possibilidades de autonomia dentro da sala de aula para fazer com que isso acontecesse.

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