Liberação de armas é risco comprovado para mulheres

Possibilidade de feminicídios é maior

Roberto Jefferson, ex-deputado federal, ex-presidente do PTB, foi denunciado à Justiça por quatro tentativas de homicídio qualificado, resistência violenta à prisão, posse irregular de arma de uso restrito e de explosivo. O aliado do presidente Jair Bolsonaro, réu em ação penal por incitação ao crime, ameaça ao livre exercício dos Poderes da União, calúnia e homofobia, então em prisão domiciliar, disparou 60 tiros e arremessou três granadas contra policiais federais que tentavam prendê-lo. Feriu dois, pôs em risco outros dois agentes, além de 20 pessoas reunidas numa casa vizinha, incluindo 16 crianças. Na mesma quarta-feira em que o Ministério Público Federal (MPF) denunciou o bolsonarista, o Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) informou que, no primeiro semestre de 2022, foram registrados 699 feminicídios no país, 3% a mais que um ano antes. Por dia, quatro brasileiras perderam a vida por ter nascido mulheres.

Nas entrelinhas da peça em que relatam os crimes de Jefferson naquele domingo, 23 de outubro, os procuradores Charles Stevan da Mota Pessoa e Vanessa Seguezzi demonstram por que a política de facilitação do acesso e afrouxamento do controle de armas de fogo promovida por Bolsonaro alimenta a violência política, ameaça forças de segurança, põe em risco a sociedade e fragiliza (ainda mais) mulheres vítimas de agressões domésticas. Após ofender a ministra Cármen Lúcia, do STF, em vídeo transmitido em redes sociais, o ex-deputado esperava que sua prisão domiciliar fosse revogada. Planejou a resistência armada para desafiar o presidente do TSE, ministro Alexandre de Moraes, em lealdade ao persistente projeto de Bolsonaro de perturbar o processo eleitoral.

Até 2018, civis podiam comprar armas, mas havia restrições de acesso a armamento de uso policial e militar. A partir de 2019, promessa de campanha de Bolsonaro, calibres de uso restrito (como 9 mm, .40, .45) e fuzis semiautomáticos foram liberados para caçadores, atiradores e colecionadores, os CACs, explica Bruno Langeani, coordenador do Instituto Sou da Paz. A legislação, além de facilitar a compra de armas e munições em imensa quantidade, afrouxou regras de controle. A validade dos registros dobrou de cinco para dez anos. Enquanto isso, o presidente da República estimulava a escalada armamentista para enfrentar opositores. “Povo armado não será escravizado” virou bordão em reuniões, transmissões e palanques.

— O caso Roberto Jefferson evidencia como uma série de mudanças nas regras de armas traz impactos concretos para violência política e vitimização de policiais. Quatro policiais federais treinados acabaram emboscados por um homem idoso, igualmente treinado e fortemente armado. Agentes com pistolas enfrentaram disparos de carabina calibre 5,56 mm. Nem a blindagem do vidro da viatura policial resistiu — sublinha Langeani, após ler a denúncia do MPF.

Condenados, réus, indiciados e até mesmo investigados são impedidos por lei de ter e portar armas. Nada disso impediu Roberto Jefferson. Na casa onde o ex-parlamentar estava preso, policiais encontraram a carabina, 7.903 munições permitidas e 370 restritas. A residência em Comendador Levy Gasparian, centro-sul fluminense, não era o endereço de guarda do armamento. Jefferson tinha registro de CAC desde 2005, mas o perdeu quando se tornou réu. Contudo conseguiu em julho deste ano formalizar no Sigma, o sistema do Exército, a aquisição da carabina, comprar munição e obter granadas para as quais nunca obtivera autorização. Investigações adicionais, pelo MPF ou pelo Ministério Público Militar, poderão esclarecer se houve falha de fiscalização ou favorecimento a um aliado do presidente.

O número de armas em mãos civis, no Brasil, beira 2 milhões — 1,2 milhão a mais nos três últimos anos, segundo levantamento dos institutos Sou da Paz e Igarapé. A quantidade, por si só, põe em risco a sociedade. Para as brasileiras, a ameaça é maior. Nas estatísticas do FBSP, 29% dos feminicídios e dois terços dos assassinatos de mulheres são cometidos com armas de fogo. Samira Bueno, diretora do FBSP, explica que, quando o agressor tem acesso a arma de fogo, o risco aumenta:

— Tanto que essa pergunta consta do formulário de avaliação que MP e Justiça usam para deliberar sobre medida protetiva de urgência. Se o agressor tiver posse ou porte, a legislação manda suspendê-los. Todo o debate nacional e internacional conclui que a flexibilização do acesso e do controle de armas tende a aumentar feminicídios e casos mais graves de violência doméstica. O derrame de armas de fogo tende a agravar essas estatísticas no médio prazo.

É tragédia certa, como o caso Jefferson sugere. Não por acaso, o futuro governo promete revogaço dos atos executivos de Bolsonaro e ampliação das medidas de controle de armas e munição. Tomara.

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