Mãe não é tudo igual

"Amor de mãe" não é e nem nunca foi vivido da mesma forma por todas as mulheres. Medo que aperta o coração de mães de crianças negras lida constantemente com a falta de liberdade.

– Coloca um casaco, meu filho!

– Na volta a gente compra, filha.

É bem provável que muitos de nós já tenhamos ouvido alguns desses bordões ditos pelas mães. Frases que geralmente estão vinculadas aos cuidados que elas têm com seus filhos e filhas, dentro do amplo espectro daquilo que configura como sendo “amor de mãe”.

A frequência desses bordões ao longo do tempo e nos mais variados espaços socioeconômicos é tamanha que um outro foi criado: “mãe é tudo igual, só muda de endereço”.

Será mesmo?

Aqui não vou entrar no debate importante sobre o que significa a maternagem, sobretudo nos tempos atuais nos quais a maior parte das mulheres trabalha dentro e fora de casa, além de ser muitas vezes arrimo de família e/ou mãe solo, e, mesmo quando consegue estabelecer uma boa parceria com os pais de seus filhos, segue suportando o peso histórico da carga mental que organiza o cotidiano de sua família.

Aqui farei uso da causalidade de comemorarmos o Dia das Mães de 2024 um dia antes do 13 de maio, quando celebramos o 136º aniversário da Abolição da Escravidão, para pensar como, no Brasil, esse “amor de mãe” não é e nem nunca foi vivido da mesma forma por todas as mulheres.

Uma percepção que eu já possuía, mas que ficou melhor evidenciada depois de ouvir a promotora de Justiça Livia Sant’Anna Vaz descrevendo os conselhos que as mães de meninos negros dão para seus filhos em pleno 2024: “não usem capuz, mesmo que esteja chovendo”, “não andem com e nem abram o guarda-chuva, é melhor que vocês peguem um resfriado, mas cheguem vivos em casa”.

É o amor de mãe em estado bruto, de mulheres (negras em sua maioria) sabedoras que seus filhos são alvo constante das ações da polícia em cidades como Salvador e Rio de Janeiro, onde meninos negros são tratados como criminosos em potencial apenas por serem que são.

Medo que lida com a falta de liberdade

E não é apenas da polícia que as crianças negras podem se tornar vítimas. Recentemente, o caso de racismo sofrido por uma menina negra em uma escola de elite em São Paulo chamou a atenção da mídia e opinião pública, lembrando que racismo não respeita classe social: é uma faca na cabeça de toda e qualquer pessoa negra. Uma faca que as mães tentam retirar da vida de seus filhos, mas que está sempre ali, lembrando que o medo que aperta o coração das mães de crianças negras é outro. Pois é um medo que lida constantemente com a falta de liberdade.

Esse medo tem história longa por aqui. Mas ao contrário do que possamos imaginar, esse não é o medo que paralisa ou que deixa preso no lugar. De alguma forma, a maternagem das mães de crianças negras, sobretudo de mulheres negras que têm filhos negros, é um medo combativo, um medo que impulsiona a luta.

E essa luta também tem uma história longa. Ainda sabemos muito pouco sobre o caráter popular da abolição da escravidão no Brasil. Conhecemos alguns nomes “clássicos” (geralmente de abolicionistas brancos), e atualmente estamos ampliando nosso repertório sobre as vidas e trajetórias de abolicionistas negros e negras. Mas houve uma dimensão mais corriqueira e cotidiana do abolicionismo, que muitas vezes nos escapa.

Pois bem, é fundamental lembrar aqui que a maternidade das mulheres negras foi transformada numa importante peça publicitária do movimento abolicionista brasileiro. Por um lado, o “amor de mãe” se transformou num chão comum entre mulheres brancas livres e mulheres negras escravizadas no Brasil de final do século 19. Lembrar que as escravizadas também eram mães foi uma forma que os abolicionistas utilizaram para amolecer os corações mais progressistas denunciando os horrores da escravidão e lembrando que havia algo em comum entre escravizados e aqueles que potencialmente poderiam ser seus proprietários.

Entretanto, o “amor de mãe” que realmente moveu as estruturas do país foi o das mulheres negras e escravizadas que souberam usar as brechas das leis abolicionistas para garantir a liberdade de seus filhos.

Se por um lado a Lei do Ventre Livre de 1871 garantia a liberdade das crianças que nascessem de ventre escravo a partir da sua promulgação, ela também permitia que o proprietário da mãe escravizada escolhesse entre dar a liberdade imediata para o recém-nascido, mediante módica indenização, ou utilizar a mão de obra dessa criança até ela completar 21 anos. Nem preciso dizer qual foi a opção escolhida pela maior parte dos proprietários brasileiros.

Na contramão dessa postura senhorial, mulheres negras e escravizadas saíram dos rincões de todo o Brasil e viajaram por dias – contando com uma poderosa rede de ajuda e afeto – para chegarem na corte do Império e pleitearem a liberdade imediata de seus filhos e filhas. Muitas conseguiram, outras tantas não, mas esse movimento se juntou às demais ações abolicionistas, agitando a sociedade toda.

Eram mulheres que, ao afirmar o tipo de mãe que podiam ser, reconfiguraram o tamanho do “amor de mãe”, e fizeram dele o combustível para a luta pela liberdade de seus filhos e filhas e pelo fim da escravidão no país.

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