Minha mãe morreu de aborto. Eu tinha 3 anos e ela 21.

Recebemos o relato de Magnólia sobre sua experiência pessoal. Publicamos porque sabemos que muitas pessoas passam pela mesma situação e o que mais vemos são críticos mais preocupados em julgar os motivos do que realmente ajudar.

Aviso: no Brasil, o aborto só é permitido por lei em casos de estupro, risco de vida para mulher ou feto anencéfalo. Não temos como fornecer nenhuma informação sobre como fazer um aborto ilegal.

Por: Magnólia

A gente não fala muito sobre isso na família, um manto de silêncio cobre essa “história vergonhosa”. Eu mesma só descobri depois de muito buscar a verdade. Mas, sim, foi isso mesmo. Ela bebeu um chá de uma erva abortiva, sem nenhuma assistência, entrou em choque e morreu no hospital. Deixou quatro filhas, a mais nova com três meses.

E, mesmo tendo vivido isso, como muitas mulheres, eu também abortei, duas vezes. Um aos 23 anos, outro aos 25. Também não gosto de falar disso, não sinto culpa, mas esse ainda é um assunto tabu e nunca tenho a chance de dizer o que penso. Quando tento, as pessoas geralmente me condenam por antecipação. Só que eu acho que agora é hora de falar. Com a divulgação dos casos de Jandira Magdalena dos Santos, Elizângela Barbosa e tantos outros de mulheres mortas depois de um aborto, e com avalanche de críticas e comentários que culpam as vítimas, me sinto na obrigação de contar a minha história. A história do lado de cá desse muro de hipocrisia e preconceito.

Da mesma forma que a minha mãe, sou de classe média com instrução universitária e já vivi melhor financeiramente, mas ainda vivo bem. Com 20 e poucos anos fazia faculdade, comprometidíssima com o movimento estudantil, curtindo meu corpo lindo, ágil e forte, mantendo a cabeça livre de preconceitos. Tinha um namorado não tão livre como eu, mas com quem eu transava, tomando pílula. Um dia, a pílula não funcionou e engravidei. O garoto apavorou e caiu fora, sinceramente, achei até bom. Fiquei eu com a situação para resolver, só com o auxílio de uma amiga sem experiência e mais apavorada do que ele.

Andei sondando e me falaram de um comprimido que a gente tomava e com dois dias a menstruação descia. Só vendia numa farmácia especifica e com um vendedor cúmplice, e assim fui lá, comprei e tomei como ele me ensinou. Tensão, tensão, quase não dormi esperando o sangue e nada. No dia seguinte e no outro, nada, de novo. Aí resolvi ir a uma festa num dancing que a galera frequentava, adorava e ainda adoro dançar. E foi lá, no meio da noite, que começou uma hemorragia feroz. Eu, trancada no banheiro, era tanto sangue que o papel higiênico acabou. Fui socorrida por uma das dançarinas profissionais, mulher incrível e solidária. Ela ligou pra uma parenta, me botou num táxi e fui para casa de uma aborteira, num bairro popular. Me lembro da dor, a mulher (mais velha) fazendo o procedimento comigo na cama de baixo do beliche, enquanto uma menina dormia na parte de cima. Ela me pedia: “não grita pra não acordar a criança”. Demorou um pouco, não sei o que ela fez, mas numa hora tudo acabou. Eu paguei um valor mais ou menos, estava sem grana, deixei um cheque… e tive que vir para casa ainda meio grogue. Fiquei boa, não me aconteceu nada depois, era e continuo sendo saudável. A dançarina me procurou para saber como eu estava — só outra mulher para entender a situação.

Da segunda vez foi uma paixão avassaladora, daquelas que duram pouco, mas deixam a cabeça meio tonta, sem pensar direito. Engravidei, o cara saiu fora e a paixão acabou. Dessa vez, uma amiga me ajudou a decidir e fui numa clínica em outra cidade. Liguei, marquei para o dia seguinte e fui cedo com a amiga, mas entrei sozinha. Tudo muito simples por fora, mas um verdadeiro hospital por dentro. Tinha umas seis garotas esperando, iam fazer o procedimento antes e depois do meu, tipo linha de montagem. A secretária recebeu o pagamento adiantado, me lembro que era caríssimo. A enfermeira fez algumas perguntas, mandou trocar de roupa e deitar numa maca, dali fomos para o centro cirúrgico, onde nos deram uma anestesia.

Não senti nada, acordei um pouco depois e o médico disse: “acabou”. E com a gente ainda meio anestesiada, a enfermeira nos devolve a roupa pra gente vestir. E nós, as sete garotas, escutamos do médico: “vocês vão embora agora, porque não quero problema pra mim. Fiz um enorme favor a vocês, não esqueçam disso. A polícia já veio aqui uma vez e não posso me arriscar”.

Minha amiga me esperava na rua e fomos para casa da irmã dela, onde pude me recuperar para pegar o avião de volta. Já em casa, semanas depois, soube que a clínica foi fechada após uma batida policial. Duas meninas, iguais a mim, foram detidas.

Quero deixar claro que em nenhum momento senti culpa pelo que fiz. Não fiquei apavorada com o que as pessoas podiam pensar, nem com medo da danação eterna. Me lembro de ter ficado com muita raiva, porque achava injusto eu não poder resolver a minha vida com um pouco mais de segurança. Desde aquela época eu já pensava assim. E minha história é comum, são muitas as meninas e mulheres que passaram e continuam passando pela mesma situação. É incrível que, tantos anos depois, as coisas continuem iguais ou talvez piores. Ainda há pouca informação sobre métodos de contracepção, especialmente para os jovens. Quando há é tudo ensinado de uma forma como se sexo fosse errado, um pecado a ser evitado que só lhes trará doenças venéreas.

As mulheres vivem a gravidez indesejada na maior solidão, qualquer que seja a idade, e sofrem muito até decidir o que fazer. Num país em que o aborto é crime tomar essa decisão torna-se mais desesperadora ainda. Isso é profundamente injusto, pensar num mundo em que há liberdade para algumas mulheres e para outras não.

Meu nome não é esse, é um pseudônimo. Não assinei esse texto, do qual não me envergonho, porque tenho filhos adultos e não quero, nem por um momento, coloca-los numa situação vulnerável, onde pessoas se sintam no direito de dizer alguma coisa que eles não gostem. É por amor a eles que faço isso. Que tempo esse que a gente vive, hein?

Fonte: Blogueiras Feministas

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