Miscigenação – Sueli Carneiro

A miscigenação racial presente em nossa sociedade vem se prestando a diferentes usos políticos e ideológicos. Não é assunto que se possa esgotar em um artigo, dada a sua complexidade, mas, em tempos de novo recenseamento, vale a pena levantar alguns de seus aspectos.  Em primeiro lugar, a miscigenação vem dando suporte ao mito da democracia racial na medida em que o intercurso sexual entre brancos, indígenas e negros seria o principal indicativo de nossa tolerância racial, argumento que omite o estupro colonial praticado pelo colonizador sobre mulheres negras e indígenas, cuja extensão está sendo revelada pelas novas pesquisas genéticas que nos informam que 61% dos que se supõem brancos em nossa sociedade têm a marca de uma ascendente negra ou índia inscrita no DNA, na proporção de 28% e 33%, respectivamente.

Por Sueli Carneiro no Jornal Correio Braziliense  – Coluna Opinião

Em segundo lugar, a miscigenação tem se constituído num instrumento eficaz de embranquecimento do país por meio da instituição de uma hierarquia cromática e de fenótipos que têm na base o negro retinto e no topo o ‘‘branco da terra”, oferecendo aos intermediários o benefício simbólico de estarem mais próximos do ideal humano, o branco. Isso tem impactado particularmente os negros brasileiros em função de tal imaginário social que indica uma suposta melhor aceitação social dos mais claros em relação aos mais escuros, o que parece ser o fator explicativo da diversidade de expressões que pessoas negras ou seus descendentes miscigenados adotam para se definirem racialmente tais como: moreno escuro, moreno claro, moreno-jambo, marrom-bombom, mulato, mestiço, caboclo, mameluco, cafuzo, ou seja, confusos, de tal maneira, que acabam todos agregados na categoria oficial do IBGE, pardo! Algo que ninguém consegue definir como raça ou cor. Talvez o termo pardo se preste apenas para agregar os que, por terem a sua identidade étnica e racial destroçada pelo racismo, pela discriminação e pelo ônus simbólico que a negritude contém socialmente, não sabem mais o que são ou simplesmente não desejam ser o que são.

Portanto, essas diferenciações vêm funcionando, com eficácia, como elementos de fragmentação da identidade negra e coibindo que esta se transforme em elemento aglutinador no campo político, para reivindicações coletivas por eqüidade racial, pois, ao contrário do que indica o imaginário social, pretos e pardos (conforme a nomenclatura do IBGE) compõem um agrupamento que, do ponto de vista dos indicadores sociais, apresenta condições de vida semelhantes e igualmente inferiores quando comparadas ao grupo branco, razão pela qual se define hoje, política e sociologicamente, a categoria negra, como a somatória daqueles que o censo classifica como pretos e pardos.
Daí decorre a importância da campanha ‘‘Não deixe sua cor passar em branco” desencadeada recentemente em Salvador a propósito do censo de 2000, cujo objetivo é a sensibilização dos negros e seus descendentes para a maneira como se vem processando a manipulação da identidade étnico-racial dos negros brasileiros e sobre a importância da assunção da identidade historicamente negada.

A cientista política Melissa Nobel, autora de Matizes de Cidadania: Raça e Censo na Política Moderna, examina como o censo brasileiro tem contribuído para embranquecer o país. Em entrevista à Folha de S. Paulo, Nobles afirma que ‘‘o censo ajuda não simplesmente a contar, mas a criar categorias de raça ou cor”.

Os censos brasileiros historicamente apresentam estranhas dificuldades quanto à identificação da população: alterações nos critérios de classificação da cor ou raça, que dificultam a comparabilidade ou compatibilização dos dados de um recenseamento para o outro, como aconteceu nos censos de 1950, 1960 e 1980; descontinuidade ou omissão no levantamento do quesito como ocorreu no censo de 1970. Essas ‘‘entradas e saídas” do quesito no censo ou as alterações nas categorias de classificação e, ainda, as poucas tabulações que são divulgadas desagregadas por raça ou cor quando o quesito é coletado, têm postergado o aprofundamento do conhecimento sobre as desigualdades raciais no Brasil.

A ciência vem revelando a falácia do conceito de raça do ponto de vista biológico. Essa constatação científica tem sido utilizada para minar as reivindicações de políticas específicas para grupos discriminados com base na ‘‘raça” ou na cor da pele . As novas pesquisas destroem as bases do racialismo do século XIX, que consagrou a superioridade racial dos brancos em relação a outros grupos humanos, justificando opressões e privilégios, mas elas ainda não têm impacto sobre as diversas manifestações de racismo em ascensão no mundo inteiro, e na persistente reprodução de desigualdades que ele gera, o que reafirma o caráter político do conceito de raça, a sua permanência e atualidade a despeito de sua insustentabilidade do ponto de vista biológico.

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