Na barriga do peixe grande

No próximo dia 4 de setembro devemos relembrar uma data importante na história da nação brasileira: 170 anos do fim do tráfico transatlântico de africanos escravizados. Quando em 1850, pressionado pelos ingleses, Euzébio de Queiróz, então ministro da justiça, promulgou a segunda lei de abolição do tráfico negreiro, o Brasil já havia recebido 4,8 milhões do total de mais de 5,3 milhões de africanos deportados como escravos para trabalharem nas minas e plantações de algodão, açúcar e café, nos serviços domésticos e nas diversas atividades urbanas.

Na história do comércio de africanos escravizados e de sua repressão, os tubarões protagonizaram boa parte das narrativas que detalham a travessia atlântica. Também na pintura, artistas como: Winslow Homer e Joseph M. W. Turner representaram, realisticamente, esses vorazes predadores que seguiam os navios negreiros, do ponto de compra até o ponto de venda, ávidos por destroçarem, em fração de segundos, os corpos dos escravizados que adoeciam e também dos amotinados, deixando impressionantes rastros de sangue. Instrumento brutal de controle, terror dos marinheiros e escravizados, estimasse que, durante trezentos anos, os tubarões devoraram mais de 1,8 milhões de corpos jogados no Atlântico. Como parte integrante do tráfico de escravizados, sempre parasitando em torno dos navios, eles também deglutiram documentos do infame comércio, provas que foram encontradas, por acaso, pelos britânicos.

Uma dessas descobertas peculiares foi o caso do navio negreiro Carlotta, uma grande escuna, de bandeira espanhola, cujos documentos foram encontrados no estômago de um tubarão nas Índias Ocidentais.

Em março de 1834, quando o cruzador ingles H.M.S Pickle, comandado pelo tenente Christopher Bagot, costeando a ilha da juventude (segunda maior ilha de Cuba), em busca de navios negreiros, perseguiu o Carlotta, ninguém poderia imaginar o que iria acontecer. Suspeitando de que se tratava de um tumbeiro, Bagot, na esperança de capturar uma “boa presa”, acurralou, deteve e averiguou: o convés e os documentos do navio espanhol (passaporte, diário de bordo e mapas). O número incomum de barris de água a bordo, o convés equipado para transportar escravizados e um número maior de marinheiros, chamaram rapidamente à atenção do comandante inglês que foi obrigado a liberar o negreiro com base nos falsos documentos apresentados. Porém, para infelicidade do comandante espanhol, depois de duas horas de averiguação, os marinheiros do Pickle perceberam algo estranho balançando em todas as direções, tentando se liberar do anzol que eles haviam deixado próximo ao casco. Os ingleses puxaram o anzol e levantaram um tubarão de 1,22m (4 pés). O animal só foi aberto na manhã do dia seguinte e, para surpresa de todos, um maço de papel amarrado foi encontrado dentro do seu estômago. Na verdade, se tratavam dos documentos pertencentes ao Carlotta, provando que ele havia desembarcado, no litoral cubano, 293 africanos escravizados quatro horas antes de ser abordada.

À primeira vista, a captura do Carlotta parece mais uma dessas incríveis histórias de pescador. É impossível não pensar que tudo fazia parte de uma estratégia do comandante Bagot com objetivo de capitalizar sua abordagem. No livro O Alufá Rufino, os historiadores João José Reis, Flávio Gomes e Marcus Carvalho narram casos em que alguns comandantes ingleses literalmente “plantaram” provas para incriminar navios negreiros, em particular um brasileiro, o Ermelinda cuja captura, em 1841, foi enquadrada na lei do Equipamento (Equipment Act de 1839), com base nos indícios materiais encontrados a bordo do navio. Porém, o apresamento do Carlotta ocorreu em 1834 e por mais fictício que possa parece, o negreiro espanhol não foi o único navio capturado pelos ingleses graças ao testemunho singular de um tubarão. Trinta e cinco anos antes, também nas índias Ocidentais, no contexto dos conflitos envolvendo França, Espanha, Holanda e Inglaterra, o tenente Hugh Whylie deteve o navio americano Nancy.

A viagem do Nancy, um brigue de 125 toneladas, começou no porto de Baltimore, no dia 3 de julho de 1799, e tinha por destino os portos de Curaçau e Santo Domingos (atual Haiti), para comprar mercadorias que abasteceriam o comércio norte-americano. Após realizar a primeira etapa, o navio seguiu seu destino rumo à Porto Príncipe, mas o mau tempo e um mastro quebrado o forçou a parar na pequena Île à Vache (Ilha da Vaca), no sul do Haiti. Logo depois, o Nancy foi perseguido e abordado pelo Sparrow, um dos cruzadores ingleses comandado pelo tenente Whylie, que vigiava o litoral Haitiano. Suspeito de ser uma “boa presa” do tráfico ilegal de mercadorias com as nações inimigas, o navio foi escoltado à Port Royal (Porto Real), na Jamaica, onde um processo foi instaurado. O comandante do Nancy, Thomas Briggs, afirmava fervorosamente que a embarcação era neutra, sem qualquer ligação com os holandeses ou espanhóis. Enquanto as investigações avançavam, outro cruzador inglês, o H.M.S Aberdavenny, comandado pelo tenente Michael Fitton, encontrou o principal indício para condenar Briggs e sua tripulação pelos crimes de perjúrio e contrabando. No dia 30 de agosto, Fitton avistou, próximo a Jacmel, a 119 quilômetros da Ilha da Vaca, um boi morto disputado por afamados tubarões, uma descrição que nos remete ao romance Moby Dick, de Herman Melville. No interesse de capturar ao menos um dos predadores, o tenente jogou uma isca e conseguiu atrair o maior de todos. Enquanto os marinheiros abriam e limpavam o animal, encontraram, em seu estômago, um embrulho com documentos cuidadosamente amarrados. Separadas no convés e postas para secarem ao sol, as folhas revelavam quem eram os verdadeiros parceiros comerciais do brigue norte-americano.

Com exceção do envelope, as cartas estavam em perfeito estado. Uma delas, datada na ilha de Curaçau, estava endereçada a Christopher Schultz, um comerciante judeu de Baltimore, e travava de assuntos mercantis. Com base nessa documentação, o Nancy e sua carga foram condenados como “boa presa” de guerra no dia 25 de novembro de 1799.

Para o tenente Fitton não haviam dúvidas de que o tubarão tinha seguido o Nancy quando o navio deixou o porto de Curaçau, possivelmente na espera de abocanhar mais do que papéis. Sabemos que o tráfico transatlântico de escravizados provocou uma mudança nos costumes dos tubarões do oceano Atlântico que migraram instintivamente seguindo os navios negreiros, em busca de carne humana. Para alguns pesquisadores, esse processo de adaptação é justamente o que os diferenciam dos tubarões de outros oceanos.

Caso encerrado, durante anos os verdadeiros documentos do Nancy e as mandíbulas do tubarão que ajudou a incriminá-la foram preservados no Tribunal do Vice Almirantado inglês na Jamaica. Em seguida foram expostos no Royal United Service Museum, em Londres. Em 1907, durante o terremoto que abalou a capital Kingstown, os documentos do brigue norte-americano desapareceram temporariamente e atualmente encontram-se no Instituto da Jamaica. O caso do Carlotta foi amplamente divulgado na imprensa internacional e também no Brasil, cuja notícia foi traduzida e publicada nos jornais Gazeta Comercial da Bahia e Diário de Pernambuco. De acordo com os jornais, o navio foi recapturado e levado a julgamento, mas ainda não encontramos os papéis que estavam na barriga do peixe grande.

Por seu caráter excepcional, os documentos supramencionados podem, por vezes, nos passar desapercebidos. No entanto, eles apontam para uma pratica, talvez comum, de ocultação de provas. Sendo assim, não devemos, em hipótese alguma, negligenciá-los por mais ficcional que eles possam parecer. Afinal de contas, a verdade é tão ou mais estranha e cruel do que a ficção.

O tráfico transatlântico de escravizados e os tubarões é, também, um dos centros de interesse do historiador Marcus Rediker, autor do celebre livro O Navio Negreiro. Em 2007, Rediker compartilhou sua descoberta de uma Petição dos Tubarões da África redigida no final do século XVIII, na qual os tubarões pediam, com ironia, para que os parlamentares continuassem apoiando o grotesco sistema que os alimentavam. Na verdade, tratava-se de um documento escrito pelo escocês James Tytler e endereçada ao Parlamento Britânico. Médico, poeta e compositor, Tytler usou do seu insólito humor para denunciar os horrores da travessia atlântica. Deu certo, sua petição foi reproduzida dentro e fora da Grã-Bretanha, ampliando o debate e juntando esforços para pressionar o parlamento pelo fim do infame comércio de seres humanos.

Quando no próximo dia 4 de setembro relembrarmos o fim do tráfico transatlântico de africanos escravizados para o Brasil, não devemos esquecer que nos últimos 40 anos a historiografia não parou de analisar, ler e reler documentos, alguns deles excepcionais como o “testemunho” de um tubarão. Graças as pesquisas universitárias, sabemos que a luta por liberdade, melhores condições de trabalho e sobrevivência foi, sobretudo, protagonizada por africanos escravizados e seus descendentes, homens e mulheres que resistiram individual e coletivamente. Essa luta ainda continua!

 

Aderivaldo Ramos de Santana

Historiador, professor no departamento de Estudos Lusófono da Universidade Bordeaux Montaigne, doutorando da Universidade Paris Sorbonne. Membro do coletivo de Historiadorxs Negrxs


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