Não existem normas ou técnicas que salvam as Vidas Negras na prática

Tecnicamente é errado falar que adolescentes e jovens são presos, isso porque a Constituição Federal brasileira além de afirmar que estes são sujeitos de direitos que devem ser assegurados de maneira prioritária pelas famílias, sociedade e Estado[1], também determina que as pessoas com menos de 18 anos são penalmente imputáveis[2]. Portanto, não podem receber tratamento igual ou mais gravoso que as pessoas adultas, mas podem ser apreendidos se forem responsabilizados por algum ato infracional contrário a legislação, o que não exclui ou diminui suas responsabilidades.

A legislação determina que adolescentes e jovens podem ser internados em estabelecimentos educacionais: as chamadas de medidas socioeducativas[3]. Entretanto, vemos que prática são frequentemente as notícias[4] das graves violações[5] de direitos[6] dentro destes estabelecimentos[7], que teoricamente devem cumprir uma função de ressocialização. Ainda, os relatos vindos das famílias[8] reforçam o entendimento que as condições para realização de visitas são iguais às condições do sistema prisional.

Outra semelhança é a cor da pele, segundo o último Levantamento Anual do Sinase[9] 56% dos adolescentes e jovens em restrição e privação de liberdade foram considerados pardos/negros, em 2014 eram 61%, e em 2016 eram 59%. Entre os presos, 61,7% são pretos ou pardos[10]. A ausência de dados atuais e oficias sobre adolescentes e jovens em privação de liberdade é apenas uma das inúmeras dificuldades deste sistema, em período de pandemia este cenário se torna ainda mais crítico e necessitado de atenção da sociedade e dos governantes.

Ainda, segundo a Constituição, é dever do Estado e direito de todos a segurança pública[11]. A Constituição é de 1988, e apenas no ano de 2012, foram 56.000 pessoas assassinadas no Brasil. Destas, 30.000 eram jovens e, desse total, 77% eram negros. A maioria dos homicídios são praticados por armas de fogo, e menos de 8% dos casos chegam a serem julgados[12].  Segundo dados do IBGE entre 2012 e 2017, foram registradas 255 mil mortes de negros por assassinatos; em proporção, negros têm 2,7 mais chances de ser vítima do que brancos[13]

Por fim, o Atlas da Violência de 2019[14] traz informações que apenas no ano de 2017, 75,5% das vítimas de homicídios foram: mães, país, filhos, filhas, tios, tias, avós, avôs, madrinhas, padrinhos, netos, netas, sobrinhos e sobrinhas, todas pessoas negras. A taxa de homicídios por 100 mil negros foi de 43,1, ao passo que a taxa de não negros (brancos, amarelos e indígenas) foi de 16,0. Ou seja, proporcionalmente às respectivas populações, para cada indivíduo não negro que sofreu homicídio em 2017, aproximadamente, 2,7 negros foram mortos.

Para o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA)[15] são adolescentes pessoas entre 12 e 18 anos[16]. Por sua vez, o Estatuto da Juventude[17] considera jovem as pessoas com idade entre 15 e 29 anos. Ou seja, as pessoas que tenham entre 15 e 18 anos[18] são sujeitos de direito duplamente prioritários. Será que foi essa a má sorte de João Pedro, ter apenas 14 anos? Certamente não.

À medida que cadáveres jovens e negros se acumulam, percebe-se que os direitos e a justiça se afastam da população preta, pobre e periférica. As técnicas e legislações não barram o encarceramento e genocídio da população preta, ou seja, não existem normas ou técnicas que salvam as Vidas Negras na prática. Não existem condições para que o Estado assegure os direitos das pessoas negras enquanto vivermos numa sociedade que usa o racismo como tecnologia para matar. Precisamos procurar soluções que mantenham crianças, adolescentes e jovens negros vivos, sonhando, sorrindo e livres. É importante lembrar que para cada adolescente e jovem sem liberdades ou morto, existem milhares de sonhos interrompidos. A única forma de criar uma nova sociedade com equidade racial é mantendo os sonhos, sorrisos e corpos Negros Vivos.

*Mayara Silva de Souza é Advogada, Ativista pela infância e adolescência e Líder do Programa de Aceleração do Desenvolvimento de Lideranças Femininas Negras: Marielle Franco pelo Fundo Baobá.


[1] Ver artigo 227 da Constituição Federal de 1988.

[2] Ver artigo 228 da Constituição Federal de 1988.

[3] Ver artigo 112, inciso VI do Estatuto da Criança e do Adolescente.

[4] Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2019/07/doze-estados-tem-sistema-socioeducativo-lotado.shtml

[5] Disponível em: http://www.mpf.mp.br/pb/sala-de-imprensa/relatorios-de-inspecao/relatorio-cedh-cej-23-04.2015

[6] Disponível em: https://www2.cnmp.mp.br/portal/images/stories/Destaques/Publicacoes/Um_Olhar_mais_Atento_02.07_WEB-completo-ok-1_1.pdf

[7]Disponível em: http://cedecaceara.org.br/site/wp-content/uploads/2019/02/Relatorio_Inspecoes_2016-V3.pdf

[8] Disponível em: https://ponte.org/revistas-vexatorias-na-fundacao-casa-e-a-rotina-de-prisioneiros/.

[9] Disponível em: https://www.gov.br/mdh/pt-br/sdh/noticias/2018/janeiro/divulgado-levantamento-anual-do-sistema-nacional-de-atendimento-socioeducativo.

[10] Disponível em: https://www2.camara.leg.br/atividade-legislativa/comissoes/comissoes-permanentes/cdhm/noticias/sistema-carcerario-brasileiro-negros-e-pobres-na-prisao

[11] Ver caput do artigo 144 da Constituição Federal de 1988.

[12] Disponível em: https://anistia.org.br/campanhas/jovemnegrovivo/

[13] Disponível em: https://exame.abril.com.br/brasil/ibge-populacao-negra-e-principal-vitima-de-homicidio-no-brasil/

[14]  Disponível em: https://www.ipea.gov.br/atlasviolencia/download/12/atlas-2019.

[15]  Lei Federal nº 8.069 de 1990.

[16]  Ver artigo 2º do Estatuto da Criança e do Adolescente.

[17] Lei Federal nº 12.852 de 2013.

[18] Ver §1º, do artigo 1º do Estatuto da Juventude.


** Este artigo é de autoria de colaboradores ou articulistas do PORTAL GELEDÉS e não representa ideias ou opiniões do veículo. Portal Geledés oferece espaço para vozes diversas da esfera pública, garantindo assim a pluralidade do debate na sociedade.

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