Notas de Rodapé – lições

por Fernando Pompeu

Imagine o Rio de Janeiro em 1965. Isso mesmo, quarenta e sete anos atrás. Vamos lá: tinha a bossa nova com seus barquinhos e bolinhas de sabão. Tinha o povo em pé e feliz na Geral do Maracanã. Tinha a barca cantareira fazendo-se de ponte entre o Rio e Niterói. Tinha o vendedor de mate gelado nas areias escaldantes de Copacabana.

Tinha, e ainda tem, o jogo do bicho. Sempre popular, com toda gente fazendo a sua fezinha. Lembro da Alzira, empregada doméstica, que a vida inteira apostou num bicho só, o jacaré. Entrava ano, saía ano. E numa véspera de Carnaval o jacaré deu uma bolada para ela. Lembro dos dentes da Alzira rindo de felicidade.

Para mim, então uma garotinha, o mundo soava suave e promissor. O mar era o céu. A floresta da Tijuca, uma Amazônia inteira. É claro, havia sofrimento: o governo militar, a igreja conservadora, o machismo ainda enaltecido, o racismo debaixo dos panos, a pobreza nos subúrbios, a miséria nas favelas.

Porém para a maioria das crianças, a parte ruim mesmo era a Escola. Autoritária e burra. Já sei, não posso e não devo generalizar. No entanto a minha escola, o Grupo Escolar Soares Pereira, era um matadouro de iniciativas. O prédio era até bonito. Um casarão tijucano, no estilo neocolonial luso-brasileiro. Em frente dele tinha uma praça, a Xavier de Brito.

Essa praça foi importante, pois da janela da minha sala de aula eu a namorava com uma paixão tremenda. Tudo nela – as árvores, os pássaros nos galhos, o imponente chafariz de bronze, a gangorra – era o avesso da minha escola. Antípoda dos corredores proibidos, da fila dos alunos na merenda, do mau humor das professoras, do meu dissabor de aprender pela decoreba.

Filha de pais ateus, eu era obrigada a assistir às aulas de religião. Era Jesus Cristo para cá, Judas Iscariotes para lá e no meio uma tal de Madalena Arrependida. Histórias confusas em aulas mais incompreensíveis do que se fossem de javanês. E vinha a ameaça da catequista: “Quem não crê em Deus está à beira de um abismo”. Batata! Eu ia e voltava da escola, temendo que de repente a rua se abrisse me matando.

Também teve a vez da grande humilhação. A professora pegou meu caderno com letras garranchadas e páginas amassadas. Na sequência, ela o comparou com o caderno do Ernani, desgraçadamente com letras perfeitas e páginas impecáveis. Na frente de toda a turma, exclamou: “Uma menina com um caderno mais porco do que o de um menino”!?!

Deixei a Soares Pereira em prantos. Eu era mais porca do que um menino! Pior, mais porca do que o antipático Ernani! Lembro que corri para a Xavier de Brito esperando que as árvores, os pássaros nos galhos, o imponente chafariz de bronze, a gangorra me dessem consolo. Não deram.

Mas a espantosa lição, aquela que calou mais profundo na minha consciência de nove anos, estava por vir. Antes tenho que contar da merenda servida na Soares Pereira. Invariável em dois: ou uma caneca de mingau, ou uma caneca de sagu. Gosmentos. Naquela época, as crianças mais pobres eram as que sempre estavam na fila da merenda. Eu quase nunca.

Pois numa manhã qualquer, a bedel dona Iracema, de quem nunca vi um sorriso, entrou na sala de aula com um bloquinho em punho. Perguntou quem merendaria naquele dia. Estranhei. Nunca ninguém havia feito essa pergunta. Aliás, excetuando a tabuada e o bê-a-bá, ninguém perguntava nada para a gente. Me bateu uma dúvida se levantava o dedo ou não. Mas ao lembrar do mingau e do sagu fiquei quieta.

No recreio, assisti à cena: a merenda dessa manhã tinha cachorro quente! Saborosa salsicha com saboroso molho no saboroso pão! Mas só para aqueles que tinham dito sim ao mingau e ao sagu de todo dia. Entendi na hora: não havia para todo mundo.

Também compreendi que omitir informações, enganar, manipular eram estratégias para a vitória de um objetivo. Elas não estavam nas cartilhas escolares. Mas estavam, pujantes, na vida.


fernanda pompeu, escritora e redatora freelancer, colunista do Nota de Rodapé,

-+=
Sair da versão mobile