O percurso do ANC até à derrota do racismo

 

Em conformidade com os registos históricos, a luta do povo sul-africano contra o apartheid começou há muito tempo. O ANC beneficiou de inúmeras ajudas e os seus militantes foram acolhidos em diversos países. Neste contexto, alguns países da África Austral também albergaram os combatentes do ANC. Foram os casos de Angola e Moçambique. Além do mais, a partir desses territórios, diversas acções foram coordenadas contra o regime do apartheid. Foi nos campos de batalha de Angola e Moçambique que o apartheid se desmoronou.

No fim de um conjunto de esforços políticos, militares, diplomáticos e de outra índole, a luta do povo sul-africano foi coroada de êxito. O regime do apartheid foi derrubado. O ANC chegou ao poder. No fim de contas, o resultado alcançado contra as forças do apartheid é, acima de tudo, uma vitória do povo sul-africano, sem esquecer, como é evidente, os contributos provenientes de muitas partes.

Derrotado o apartheid, há toda a necessidade de percebermos certos aspectos da luta contra esse anacrónico sistema. Por um lado, para penetrarmos na história da luta do povo sul-africano sob liderança do ANC e, por outro lado, de modo a entendermos certas particularidades dessa luta.

Vários estudos têm sido feitos sobre a matéria. Uns prestam a­tenção às frentes externa e interna. Os demais congregam os dois lados e outras tantas questões. Todos os estudos se fazem com o mesmo propósito. Perceber mais sobre a luta do povo sul-africano contra o apartheid.

Guerra do Povo

A nossa atenção vai incidir sobre a frente interna para que possamos perceber o seu peso no conjunto da luta e ver como ela contribuiu para a vitória final. De resto, a guerra do povo, que constitui o fulcro deste texto, está associada à frente interna. Para aferir o peso e a dimensão da frente interna, no entanto, fazemos recurso a estudos publicados por duas instituições sul-africanas – Institute for Strategic Studies (University of Pretoria) e South African Institute of Race Relations.

O estudo divulgado pelo Instituto Sul-africano de Relações Raciais é de 2009 e consta da obra “Guerra do Povo Nova Luz na Luta pela África do Sul”. Já o estudo publicado pelo Instituto de Estudos Estratégicos da Universidade de Pretória é de 1987 e está expresso no artigo “Os distúrbios na África do Sul: Setembro de 1984 – Maio de 1987” (ISSUP Strategic Review, 1987).

Para melhor compreendermos o esforço da frente interna, é preciso escalonar os factos de forma sequencial. Como é do domínio público, a luta na África do Sul passou por várias etapas. Depois da criação do Congresso Nacional Africano – ANC e de outras forças políticas (Partido Comunista Sul-africano – SACP e Congresso Pan-africanista – PAC) ocorreram situações que acabaram por moldar a vida política do país e configurar os desafios subsequentes.

Os acontecimentos que vão de 1960 a 1977 são considerados como parte da luta ligada à resistência ao apartheid. Este período de tempo engloba as grandes manifestações ocorridas em Sharpeville, Soweto, Cape Town, Durban e Port Elizabeth e actividades políticas de mobilização e de protesto. Além do mais, é marcado pelo aprofundamento das relações entre os partidos comunistas da União Soviética e da África do Sul, cujas relações datam do ano de 1921.

Aliança revolucionária

Outro aspecto é a aliança revolucionária estabelecida entre o Congresso Nacional Africano – ANC e o Partido Comunista Sul-africano – SACP. Desta maneira, as acções armadas fizeram-se sentir em diferentes pontos do território sul-africano. Mas, em contrapartida, as contramedidas em termos de segurança interna também não se fizeram esperar. Em consequência, a liderança da luta armada, na qual constava o próprio Nelson Mandela, acabou por ser detida.

No âmbito das medidas contra as acções armadas dos combatentes da liberdade, um cordão sanitário tinha sido estabelecido nos países limítrofes, o que refreou a estratégia da luta armada e remeteu o ANC à completa imobilidade. Diante deste estado de coisas, a credibilidade do ANC ficou, de certo modo, beliscada.

Aliás, o estado da organização era de tal ordem que a União Soviética foi forçada a reduzir as ajudas materiais e financeiras, e remeteu-as para os movimentos de libertação das colónias portuguesas. Na medida em que esses movimentos estavam a dar mais provas do ponto de vista da luta armada no terreno.

Campanha internacional

Quando se alcançou, entretanto, o entendimento no seio das Nações Unidas sobre o perigo que representava o apartheid, este passou a ser considerado como um crime contra a humanidade.

Assim, em 1973, começou uma campanha internacional contra o apartheid e foi objecto de condenação. Ao mesmo tempo, nestas circunstâncias, várias vozes se mobilizaram e ecoaram em muitos pontos do globo, o que foi conferindo alento ao ANC. Em Portugal eclodiu a Revolução dos Cravos devido à pressão da guerra nas colónias portuguesas. Assim se criaram condições para remoção do cordão sanitário, que imobilizava a luta armada do ANC. Outro aspecto notório é que o ANC, na prática, também não tinha condições para atender o grande movimento reivindicativo das massas trabalhadoras dos anos 70 e que exercia uma forte pressão sobre o sistema do apartheid. A imobilidade e a inoperância eram os elementos que imperavam no seio da organização.

Nestas condições emergiu uma nova organização política que passou a conduzir as massas, ao ponto de se converter em verdadeira opositora do regime do apartheid. Trata-se do Inkatha Yenkululelo Yesizwe (Inkatha), que foi formado por Mangosuthu Buthelezi. A sua plataforma de luta baseava-se na não-violência e numa perspectiva multidimensional do problema interno. Essa plataforma de luta do Inkatha, assente na fórmula da não-violência, produziu resultados, mas, ao mesmo tempo, ela esbarrou diante dos interesses e da relutância do regime do apartheid.

Revolta do Soweto

Nestas condições teve lugar a grande revolta de estudantes em Soweto (1976), sob liderança de Steven Bantu Biko e Barney Pityan (fundadores da Organização Sul-africana de Estudantes – SASO e mentores (nova vaga) do movimento de “Consciência Negra” da África do Sul. Depois dessa revolta, Steven Bantu Biko foi detido e morreu. Estes factos somados vão inaugurar, nos tempos que se seguem, outro capítulo na história da luta do povo sul-africano.

Milhares de jovens exilaram-se e juntaram-se ao ANC. Apesar disto, alguns jovens, pertencentes outrora ao movimento de “Consciência Negra”, estavam interessados numa “terceira força” devido ao estado em se encontrava o ANC e à situação de estagnação da luta armada contra o apartheid. Só que os jovens foram convencidos, enquadrados e ficaram, pois o ANC estava a criar condições para a luta.

Depois esses jovens passaram a atrair outros jovens, de todos os recantos da África do Sul, para incorporarem o Umkhonto (braço armado do ANC). Nestas condições, a União Soviética incrementou as ajudas financeiras e materiais, e o ANC foi reconhecido na arena internacional como legítimo representante do povo sul-africano.

Assim, em 1979, o regime do apartheid estava desacreditado no plano interno e internacional. Do outro lado, as forças patrióticas no exílio – ANC e SACP – encontravam-se paralisadas e tinham pouco peso em comparação com o Inkatha e o movimento de “Consciência Negra”. Em consequência, os esforços do ANC foram concentrados sobre a luta armada e no sentido da assunção da liderança da luta.

Experiência do Vietname

Para atingir os seus desideratos, o ANC socorreu-se de outras experiências. Tendo a preferência recaído sobre a experiência do Vietname, que resulta da luta do seu povo contra os franceses e americanos. Os dirigentes do ANC e do SACP, em perfeita aliança e coordenação, estiveram no Vietname (1978 -79) e absorveram essa experiência. Quer dizer, eles foram aprender a fórmula da guerra do povo.

Esta fórmula tem a sua origem nos princípios da guerra revolucionária concebidos por Mao e que foram enriquecidos por Vo Nguyen Giap. O saber foi aplicado e produziu muitos bons resultados. Assim se criou uma poderosa concepção de guerra.

Em linhas gerais, a guerra do povo é uma mescla de luta política e militar (violência) com o propósito de encurralar o oponente entre as duas formas de luta. Além do mais, neste género de guerra não se estabelece uma linha divisória entre combatentes e civis. Por outras palavras, todos aqueles que se encontram na área do conflito são identificados como “armas de guerra”. Aqui reside o conceito de guerra do povo.

Uma vez assimilada a fórmula e consideradas as características próprias do povo sul-africano, o ANC criou as condições para o efeito. Por isso, a preparação começou em 1979 e terminou em 1983.

O que implicou reorganizar o ANC e depois passar para uma fase de propaganda armada com a finalidade de divulgar a organização. De seguida, eles passaram para a estruturação de uma organização armada e para uma fase de mobilização e luta política.

Batalha do Cuito Cuanavale

Criadas as condições em conformidade com os princípios da guerra do povo, então a guerra teve o seu início em 1984. O objectivo principal era tornar a África do Sul ingovernável. Em 1985, o ANC fez um apelo no sentido da intensificação da guerra. Três anos depois, a guerra tinha atingido o seu máximo. A Batalha do Cuito Cuanavale foi o fim do apartheid.

A pressão foi mantida, enquanto ocorriam outros desenvolvimentos políticos e militares na África Austral. Esta perspectiva de luta foi preservada até ao estabelecimento do processo de transição política.

Para ilustrar o impacto da guerra do povo em relação ao regime do apartheid, destacamos um trecho de um estudo levado a cabo por uma instituição sul-africana (Ver ISSUP Strategic Review, 1987, p. 21) onde se diz o seguinte: “Desde Setembro de 1984, a África do Sul tem experimentado uma onda séria de violência e distúrbios.

No sentido de conter a escalada de violência, em 12 de Junho de 1986, o Presidente de Estado declarou o Estado de Emergência Nacional. O Presidente de Estado fixou três objectivos prioritários a alcançar com o Estado de Emergência Nacional, a saber: regresso à estabilidade através da restauração da lei e ordem; retorno à normalidade e a continuação do processo de reformas.”

Em linhas gerais, podemos sublinhar que a guerra do povo foi uma realidade vivida. Ela foi essencial no conjunto da luta levada a cabo pelo ANC no plano interno. Este modelo de luta foi a mola impulsionadora para as mudanças que se operaram na África do Sul e que aceleram a derrota do regime do apartheid.

Assim se criaram as condições, no plano interno, que conduziram o ANC ao poder através de eleições gerais e livres, que fizeram de Nelson Mandela o primeiro Presidente da África do Sul livre do apartheid.

 

 

 

 

Fonte: Jornal Angola

+ sobre o tema

Wyza: Um Bakongo

Wyza é um Bakongo, etnia formada pelos povos vindos...

Havaianas & Isaac Silva: marca e estilista lançam Collab inspirada na cultura afroindígena

Desde os primeiros contatos com os povos originários do...

IFRR realiza Semana da Consciência Negra em novembro

O campus Boa Vista do Instituto Federal de...

para lembrar

Omar Victor Diop: A beleza africana em filmes de Hollywood

Modelos protagonizam cenas clássicas do cinema americano em...

Olodum comemora suas três décadas

- Fonte: Bem Paraná - O grupo baiano Olodum...

Ludmilla inicia transição capilar: “chegou a hora de ser eu mesma”

A cantora Ludmilla revela que está em transição capilar...
spot_imgspot_img

Segundo documentário sobre Luiz Melodia disseca com precisão o coração indomado, rebelde e livre do artista

Resenha de documentário musical da 16ª edição do festival In-Edit Brasil Título: Luiz Melodia – No coração do Brasil Direção: Alessandra Dorgan Roteiro: Alessandra Dorgan, Patricia Palumbo e Joaquim Castro (com colaboração de Raul Perez) a partir...

Nota de pesar: Flávio Jorge

Acabamos de receber a triste notícia do falecimento do nosso amigo e companheiro de militância Flávio Jorge, o Flavinho, uma das mais importantes lideranças...

Flávia Souza, titular do Fórum de Mulheres do Hip Hop, estreia na direção de espetáculo infantil antirracista 

Após mais de vinte anos de carreira, com diversos prêmios e monções no teatro, dança e música, a multiartista e ativista cultural, Flávia Souza estreia na...
-+=