O protagonismo negro perante a pandemia do Covid-19 – Outro olhar sobre a Conjuntura Nacional

As infinitas chibatadas e suas marcas não lhe amedrontaram.

Os estupros sofridos e a normalização deles, não lhe afrouxaram.

A sinhá carrasca, aquela que lhe cuspiu na cara, lhe pisou e invejou, não lhe tirou o brilho nem o calor.

Enterrar seus filhos aos gritos, laçados meninos, homens pequenos geniais, sábios, traquinos, 

Interrompidos por tiros, nada disso lhe desesperançou.

O tempo passou, você conheceu o livro, o livro lhe armou e, hoje, para acessá-la com êxito, 

é preciso usar, antes de tudo, com sua licença e por favor, sujeito a sim ou não… 

dô mó valor!

Preta Flor, de Milsoul santos

O ministro da saúde, Nelson Mandetta foi demitido. Saiu bem. Seu trabalho no enfrentamento do COVID-19 foi prestigiado por mídia e opinião pública. Novos dados e cenários insuflam os debates: “Bolsonaro é tão ruim e pernicioso, que deixou escorrer pelos dedos, uma oportunidade única de julgamento positivo sobre ações de seu governo”!!! “E o Mandetta, quais seus próximos passos? A direita vai investir nele como anti-bolsonaro?E o judiciário, vai bancar o isolamento? E o congresso”? “E o STF”?  “E o ‘Gabinete do ódio”? “Afinal, o Braga Neto está ou não no comando”?

Evidente a importância do contexto político-institucional, dos esforços para manter conquistas antirracistas e dos direitos humanos em geral, assim como de nos preparar para as eleições, etc, etc. Evidente ainda, que é necessário estar atentxs ao desenrolar dos movimentos em centros de poder, à complexidade de agentes progressistas influentes na sociedade civil, e em relação a segmentos não fascistas mais ao centro do espectro político-ideológico.

MAS… isso é suficiente?

Até quando os setores progressistas, inclusive a militância negra, estaremos amarradxs aos cenários e jogos de poder políticos-institucionais, oferecidos à grande maioria do nosso povo, através da mídia hegemônica, como questões principais na conjuntura?

Será difícil perceber que, se existe uma esquerda morta, como escreveu Wladimir Safatle¹, não é essa juventude negra e pobre que se agiganta perante a crise, com garra, consciência e ações, em favelas e lugares de pobreza? Que está inventando jeitos de atenuar o terror, que de crônico se tornou agudo? Isso sim me entusiasma: gente nossa em toda parte, articulando solidariedade e doações, esquemas de pegar e entregar comidas, produtos de limpeza, remédios, e outras necessidades de sempre, hoje pioradas, do povo pobre, de maioria negra. O desembaraço desse protagonismo surpreende telejornais e “formadores de opinião”! Logo servirão de exemplos para a intelectualidade mais engajada e influente, pronta a reconhecer valores, entender e explicar os significados mais profundos daquelas ações e do contexto em que estão imersas, e assumir o comando das novas articulações, enunciar novas palavras de ordem, pilotar o processo eleitoral!!!!

Que tal observar melhor e ver que “tudo andou”? A resistência de sempre, histórica e cantada em raps e sambas, a capacidade de “se virar”, de “dar a volta por cima”, está se mostrando e se tornando mais do que isso! Eles e elas produzem seus próprios pensares e agires, forjando potências muito além do enfrentamento à tragédia que se anuncia e promete ceifar tantas vidas! Enquanto entre os setores progressistas, se repetem as dificuldades de ir além das análises criativas, das palavras de ordem e da perplexidade, como vem acontecendo desde o golpe, face a derrotas sucessivas e à degeneração da “democracia” (que nunca valeu para espaços de pobreza, de maioria negra) e de outros aspectos civilizatórios tão caros prá quem tem acesso.

Tudo andou! O ciclo de governos progressistas foi resultado de acúmulos de “Marias, Mahins, Marielles, Malês”! Fez muito, sacudindo e colorindo espaços quase exclusivamente brancos, incentivando a criação de caminhos e alimentando sonhos de efetiva igualdade racial e social. Fez o melhor que pode:

– Insuficiente para evitar os retrocessos políticos-institucionais!

Tais retrocessos serão capazes de derrotar, também, o crescimento de importantes segmentos de lutas sociais, que incorporaram e aceleraram a Consciência Negra, como avanço no nível e na qualidade da consciência social e política?

Para a militância negra e antirracista isso é central na atual conjuntura e em qualquer perspectiva, para a reconstrução das lutas políticas e sociais. Também é decisivo para uma geração de militantes negras e negros (que se construiu em paralelo ao crescimento dos setores progressistas, pós ditadura),que só ganhou até agora: ajudou a vencer a ditadura, colocou em xeque o mito da democracia racial, interagiu com a ancestralidade e com as lutas negras em África e em toda parte do mundo e compôs a noção de Consciência Negra, inaugurou a institucionalidade e a promoção da igualdade racial e a “era das ações afirmativas”!!!

– E tudo isso se mostra suficiente!!!

As tochas estão nas mãos das gerações atuais de militantes negras e negros: “fogo na Babilônia”!²

– Consolidar a Consciência Negra e social e o papel pedagógico que o Movimento Negro vem cumprindo na sociedade brasileira!³

– Construir espaços EFETIVOS de diálogos com nosso povo negro, pobre, indígena!

– “Ninguém conscientiza ninguém, ninguém se conscientiza sozinho, isso acontece em comunhão”!!!4

– DIÁLOGOS, não “lacrações” – Construir conhecimentos e gerar estratégias JUNTXS! 

_____________________________________

1- https://brasil.elpais.com/opiniao/2020-02-10/como-a-esquerda-brasileira-morreu.html

2-  Referência à canção de Bob Marley, em relação à sociedade degradada.

3- Viva o livro “O Movimento Negro Educador”, de Nilma Lino Gomes!!!

4-  Viva Paulo Freire!!!!


** Este artigo é de autoria de colaboradores ou articulistas do PORTAL GELEDÉS e não representa ideias ou opiniões do veículo. Portal Geledés oferece espaço para vozes diversas da esfera pública, garantindo assim a pluralidade do debate na sociedade.

+ sobre o tema

Gás lacrimogêneo usado pela PM pode ter contribuído para morte de manifestante no Rio

Fernandão, que já tinha problemas respiratórios, sofreu uma...

Após protestar contra racismo, Kaepernick não consegue clube na NFL

Washington, 5 set (EFE).- O quarterback Colin Kaepernick, que...

Madonna pede desculpas no Instagram após ser acusada de racismo

Madonna teria publicado no Instagram uma foto do filho...

Investigados por racismo e discurso de ódio na internet são alvos de operação em 10 estados

A Polícia Civil de Santa Catarina deflagrou operação nesta quinta-feira (5)...

para lembrar

COTAS E A BIBLIEX

Fonte: Blog Jorge da Silva -   Em...

Vítimas de racismo receberão atendimento psicológico gratuito no Distrito Federal

A ideia é fruto de acordo entre Defensoria Pública...

Racismo no aeroporto de Aracaju

Fonte: Consórcio Culturais -   Membro do Movimento...

Mulher negra filma ataque racista em posto de Salvador: “Odeio preto, não suporto”

Uma mulher negra foi vítima de racismo em uma loja de...
spot_imgspot_img

Ação afirmativa no Brasil, política virtuosa no século 21

As políticas públicas de ação afirmativa tiveram seu marco inicial no Brasil em 2001, quando o governador do Rio de Janeiro Anthony Garotinho sancionou...

Decisão do STF sobre maconha é avanço relativo

Movimentos é uma organização de jovens favelados e periféricos brasileiros, que atuam, via educação, arte e comunicação, no enfrentamento à violência, ao racismo, às desigualdades....

Por que o racismo é uma crise de saúde

Quando Layal Liverpool era adolescente, na Holanda, ela começou a observar pequenas manchas sem pigmento no rosto e nos braços. O médico receitou antibióticos e...
-+=