Obrigar mulher estuprada a ouvir coração de feto é tortura, diz especialista

O projeto do vereador de São Paulo Fernando Holiday (DEM) propõe empecilhos à interrupção de gravidez até nos casos autorizados pela Constituição e pelo Supremo Tribunal Federal.

Por Tatiana Farah , do BuzzFeed Brasil

Foto: Thinkstock

Além de propor internação compulsória de mulheres com “propensão ao abortamento ilegal”, o projeto de lei do vereador de São Paulo Fernando Holiday (DEM) propõe uma série de medidas que visa retardar e criar empecilhos à interrupção de gravidez em casos autorizados pela Constituição (risco de morte para a gestante e estupro) ou pelo Supremo Tribunal Federal (fetos anencéfalos).

Entre as medidas estão só permitir o aborto nos casos legais depois da emissão de um “alvará judiciário” (artigo 2º, o que hoje não existe), impõe atendimento psicológico para dissuadir a decisão de abortar, artigo 3º), “obrigará a gestante a passar por atendimento religioso (artigo 5º) e, depois de tudo isso, estabelece que a mulher, que ainda queira exercer seu direito ao aberto legal, seja submetida a “ver e ouvir os resultados do exame de imagem e som”.

Se por um lado o projeto tem constitucionalidade duvidosa (ao criar despesas para o Executivo, o que vereador não pode fazer, e por regulamentar em nível municipal matéria constitucional e decisões do plenário do Supremo), o projeto chocou especialistas em aborto legal. O aborto legal é permitido até a 22ª semana de gestação ou até o feto atingir 500 gramas.

Para a psicóloga Daniela Pedroso, que há 22 anos trabalha com vítimas de estupro, o projeto de lei “perpetua a violência sofrida por essas mulheres e pode ser comparado a uma tortura”.

“Como é que você coloca uma mulher para ouvir o coração de um feto fruto de um estupro? A mulher que engravida de um estuprador sente essa gestação como uma segunda violência. Você não pode obrigar essa mulher a ouvir o coração do feto”, diz ela.

Daniela fala em nome do Conselho Regional de Psicologia e do GEA (Grupo de Estudos sobre Aborto), que atua com especialistas de forma multidisciplinar há 12 anos no país.

No próximo sábado, o Conselho deve discutir o projeto de lei de Holiday (352/2019) que, segundo a psicóloga, fere o código de ética profissional ao obrigar a mulher que tem direito ao aborto legal a passar por “atendimento psicológico com vistas a dissuadi-la da ideia de realizar o abortamento”.

“O psicólogo não pode decidir pelo paciente. A gente trabalha de acordo com a decisão dessa mulher e oferece a assistência necessária. Esse artigo fere o nosso código de ética”.

Outro ponto do projeto de lei é obrigar a mulher a conhecer as técnicas de abortamento “com explicação sobre os atos de destruição, fatiamento e sucção do feto, bem como sobre a reação do feto a tais medidas”.

“A gente vai ter de mostrar imagem que é mentira? De coisa que não acontece? Porque essas imagens que mostram na internet sobre aborto não são verdadeiras”, disse a psicóloga.

Para Daniela, o projeto de lei foi elaborado por quem não conhece a realidade de uma mulher que busca o aborto legal.

“Hoje, a mulher faz o ultrassom. Mas é tratada com respeito, ninguém a coloca para ouvir o coração do feto de um estupro ou de um feto que ela sabe que não poderá sobreviver [no caso do anencéfalo]”, aponta a psicóloga.

Alvará para aborto

Mas não é só essa série de “procedimentos” que a lei proposta por Holiday prevê. Hoje, a mulher não precisa recorrer à Justiça ou à polícia para obter o direito ao aborto legal. Com o PL 352, a mulher tem de obter um alvará judicial.

Ainda assim, a Procuradoria-Geral do Município pode recorrer da decisão para não realizar o aborto.

Vencida essa etapa, o projeto de lei estabelece que a mulher aguarde pelo menos 15 dias para fazer o procedimento. E é nesse período que a mulher tem de ouvir e ver o ultrassom, além de passar por um psicólogo que a estimule a não abortar.

“É um retrocesso de um direito que já existe desde 1940”, afirma Daniela.

Um dos riscos apontados pela psicóloga é que, caso essa lei seja implementada, muitas mulheres percam o prazo legal para o abortamento. “Isso onera também o SUS porque o tempo de internação dessa mulher aumenta de acordo com o tempo da gestação para realizar o aborto”.

Em São Paulo, os casos de aborto legal são encaminhados para o Hospital Pérola Byington, que pertence ao governo do Estado. No ano passado, o hospital realizou 363 interrupções de gestação previstas em lei. Este ano, até o dia 31 de maio, foram atendidas 156 pacientes.

Mulheres internadas

Em seu artigo 6º, o projeto de lei de Fernando Holiday, que se notabilizou como líder do Movimento Brasil Livre (MBL), prevê que os médicos façam até a internação psiquiátrica da mulher, quando detectarem “uma gravidez em que as condições sociais e psicológicas da gestante indiquem propensão ao abortamento ilegal”.

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