Peru classifica trans como “portadores de enfermidades mentais”

Decreto assinado pela presidente Dina Boluarte trata oficialmente a transexualidade como transtorno. Ativistas LGBTQIAP+ peruanos admitem ao Correio preocupação com as consequências do documento

FONTECorreio Braziliense, por Rodrigo Craveiro
Manifestação contra a transfobia em avenida de Lima, capital do Peru: "Nenhuma morte a mais" - (crédito: Alfonso Silva Santisteban)

O Decreto Supremo N° 009-2024-SA, assinado pela presidente do Peru, Dina Boluarte, às vésperas do Dia Internacional contra a Homofobia, a Bifobia e a Transfobia, em 17 de maio, trata homens e mulheres trans como “portadores de doenças mentais”. Ao publicar o documento, o Ministério da Saúde (Minsa) peruano alegou que o texto facilitará o acesso de pessoas trans ao tratamento psicológico gratuito.

O decreto estabelece que “a transexualidade, o travestismo de duplo papel, o transtorno de identidade de gênero infantil, transtornos de identidade de gênero, o travestismo fetichista e a orientação sexual egodistânica” se incluem em problemas de saúde mental. A decisão ignora o fato de que a Organização Mundial da Saúde (OMS) excluiu, em 1990, a homossexualidade da lista de Classificação Internacional de Enfermidades (CIE). 

Consultados pelo Correio, membros da comunidade LGBTQIAP+ peruana reagiram com indignação e medo em relação às possíveis consequências do decreto. Em tese, o documento é visto como potencial ferramenta para aprofundar a intolerância sexual e a transfobia em um país de 32 milhões de habitantes, dos quais 74,6% são cristãos. 

Jornalista, mulher trans e ativista no Peru, Gianna Camacho García, 36 anos, explicou que o decreto se insere um eixo de três ações lançadas pelo governo Boluarte contra as pessoas LGBTQIAP+. “O Congresso da República do Peru está repleto de legisladores conservadores e ultrarreligiosos, que se opõem à nossa população. São congressistas contrários aos direitos LGBTQIAP+. Creio que essa atitude não foi algo isolado. Forma parte de um plano maior para que nós não tenhamos cidadania plena”, disse, por meio do WhatsApp.

Para Gianna, o fato de o decreto ter sido criado às vésperas do Dia Internacional contra a Homofobia, a Bifobia e a Transfobia, sinaliza a mensagem de que políticos desejam que as pessoas LGBTQIAP+ “deixem de existir”.

Gianna admite que algumas congressistas trabalham pela revogação do decreto. “A comunidade trans peruana tem trabalhado pela dissidência política. A única forma de anular um decreto supremo passa pela promulgação de outro decreto. Estamos em gestões para iniciar essa batalha”, comentou a jornalista, atualmente no cargo de coordenadora do Observatório de Direitos Humanos LGBTQIAP+ do Peru. 

Diretora e fundadora da organização não governamental Féminas Perú e mulher trans, Leyla Huerta afirmou que o impacto do decreto para a comunidade trans no país é “completamente devastador”. “Ele nos patologiza. Classifica qualquer ato contrário a nós como algo positivo para a sociedade, pois nos trata como doentes mentais”, lamentou. Leyla vê o texto inserido em um plano dos setores conservadores para anularem os avanços de cidadania conquistados pela comunidade LGBTQIAP+. “Isso não começou agora, mas em 2018, quando passaram a dinamitar a democracia no Peru. O Ministério da Saúde avança nesse sentido, com esse decreto nefasto, que põe um cadeado a mais no direito de exercermos nossa cidade, como qualquer outra pessoa.”

Por sua vez, o médico Joaquín Alexander López Murga, um homem trans de 32 anos em Lima, disse à reportagem que o Ministério da Saúde peruano subestimou o potencial de maleficência desse tipo de documento. “O CIE-11 é, basicamente, uma lista de enfermidades e códigos estatísticos. Ele não deve ser interpretado como um manual ou uma forma de tratamento. No Peru, as pessoas LGBTQIAP+ não estão protegidas pelo Estado e praticamente não têm documentos dirigidos à comunidade trans, como protocolos de tratamento. Qualquer pessoa pode imprimir o decreto e afirmar que estamos abordados em uma determinada categoria e que o Estado publicou essa classificação”, criticou. 

Problema

De acordo com Percy Mayta-Tristán, médico da Univesidad Científica del Sur (em Lima), o decreto buscava garantir que as pessoas trans peruanas tivessem acesso ao Sistema Integral de Saúde (SIS). “Essa população vulnerável não tem seguro de saúde. O Ministério da Saúde buscava encontrar um código, dentro da classificação de enfermidades, para que as pessoas trans pudessem se beneficiar do seguro”, explicou ao Correio, por meio da rede social X. “Lamentavelmente, implementou-se outro critério, que transforma a transexualidade em patologia. O que era uma boa ideia para favorecer a população trans resultou em problema, pois, oficialmente, considera que as pessoas trans têm um diagnóstico de doença mental.”

Maya-Tristán alerta que, ao reconhecer a classificação de doença mental, o governo abre as portas para as “terapias de conversão”, proibidas no país. “Isso pode validar os grupos conservadores e certos setores religiosos a praticarem essas práticas. As terapias de conversão são torturas contra pessoas LGBTQIAP+, a fim de mudá-las. Isso pode causar depressão, ansiedade e tentativas de suicídio”, disse. 

Indignação e insegurança

Gianna Camacho García, mulher trans, coordenadora do Observatório de Direitos Humanos LGBTQIAP no Peru(foto: Fotos: Arquivo pessoal )

“Os congressistas peruanos eliminaram o enfoque de gênero e têm apoiado práticas que atentam contra nós, da população LGBTQIAP+. O Peru é um país religioso, e nossa sociedade tem duplos padrões de julgamento. As pessoas fazem uma coisa e, às escondidas, fazem outra. Nunca houve tantas pessoas conservadores e religiosas em posições de poder. Os extremos dos movimentos da direita e da esquerda se juntaram. Os partidos políticos que divergem entre si encontraram algo em comum: a oposição às pessoas LGBTQIAP+.”

Gianna Camacho García, 36 anos, mulher trans, coordenadora do Observatório de Direitos Humanos LGBTQIAP+ no Peru


Joaquín Alexander López Murga, 32 anos, homem trans, médico, morador de Lima(foto: Arquivo pessoal )

“Não me sinto pessoalmente ofendido pelo decreto. Entendo as razões e o contexto, e sei como funciona o documento. No entanto, tenho medo ante o desconhecimento disso. Posso ter todas as razões do mundo e as teorias possíveis. Se alguém me disser que sou um doente mental, com base nesse documento, escutarei pouquíssimas razões lógicas e a pessoa não se importará com a realidade das coisas. Ante a falta de normativa no Estado peruano e de uma lei de identidade de gênero, as autoridades nos deixaram à deriva. Um decreto assim é irresponsável.”

Joaquín Alexander López Murga, 32 anos, homem trans, médico, morador de Lima


Leyla Huerta, mulher trans, fundadora da Féminas Perú(foto: Arquivo pessoal )

“Essa ação ofende a toda a comunidade de pessoas trans no Peru. O decreto nos coloca em uma situação de perigo muito complexa, pois permite que qualquer pessoa nos agrida e use como justificativa a saúde mental. Também abre portas para terapias de conversão às pessoas trans. O decreto aborda a questão da infância e à sua associação com a ideologia de gênero.”

Leyla Huerta, mulher trans, fundadora da Féminas Perú 

-+=
Sair da versão mobile