Quilombolas do Rio Grande do Sul pedem socorro para receber alimentos

Artigo produzido por Redação de Geledés

Falta de acesso terrestre aos territórios impede que comunidades de descendentes de escravizados sejam abastecidas; líderes quilombolas apelam às autoridades estaduais e federais por ajuda emergencial

“Os alimentos não estão chegando às comunidades quilombolas. Estamos numa corrente de solidariedade dentro do Estado em razão da condição das estradas. Além disso, os quilombolas que vão buscar alimentos, não conseguem trazê-los sozinhos. E, muitas vezes, quando alcançam chegar em Porto Alegre, encontram prateleiras vazias nos lugares das doações, pois outras pessoas já levaram tudo”.

A descrição a Geledés sobre a situação calamitosa em que se encontram inúmeras comunidades quilombolas no interior do Rio Grande do Sul é de Teresinha Lopes Paim, presidente da Federação dos Quilombos do Rio Grande do Sul. São 169 comunidades formadas por remanescentes de escravizados no Estado, sendo que 145 foram diretamente afetadas e 15 delas estão completamente isoladas, de acordo com dados da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq).

Quilombo Armada é um dos afetados pelas fortes chuvas
crédito Márcio Oliveira
crédito Márcio Oliveira

A líder quilombola Teresinha conta a Geledés que em seu quilombo, Rincão dos Martimianos, em Restinga Seca, próximo à cidade de Santa Maria, caíram quatro pontes, um cenário comum diante da devastação causada pelas chuvas no interior rio-grandense, em que só é possível se chegar de barco ou helicóptero. Em Rincão dos Martimianos vivem 756 quilombolas e é um dos 320 que se encontram em estado de emergência.

Teresinha Lopes Paim, líder quilombola, afirma que alimentos não chegam aos territórios

Teresinha se comove ao relatar como os movimentos sociais, em especial o movimento negro, se organiza numa corrente de solidariedade para ajudar justamente as populações mais vulneráveis impactadas pela pior crise climática que o Brasil já enfrentou. “Agradeço aos voluntários, ao amor desses seres humanos por ajudar as pessoas que tanto precisam”, diz ela.

Teresinha é enfática ao responsabilizar quem deveria socorrer as populações quilombolas. “Houve negligência por parte do governo do Estado e dos órgãos públicos do Rio Grande do Sul para o povo negro. Sempre ficamos para trás; os quilombolas nunca são prioridade. O Estado não nos reconhece como população prioritária”. E vai além: “Isso não é de agora. Foi assim também na pandemia”, diz ela, lembrando os tempos difíceis em que os quilombos também ficaram em isolamento devido à epidemia do covid-19.

Quando a enchente chegou, Teresinha, que trabalha como cuidadora de idosos, teve que sair às pressas de sua casa com seu marido e as duas crianças, Emanuelle, de 7 anos, e Erik, de 9 anos, para a casa de sua sobrinha, onde ficou até as águas baixarem. Ao falar com a reportagem, ela descreveu o trabalho de árdua limpeza da casa, tomada pelo barro, e da necessidade de produtos de limpeza aportarem nos quilombos.

Para Roberto Potácio Rosa, da coordenação nacional do Conaq e membro fundador da Associação das Comunidades Quilombolas do Rio Grande, quando há uma crise desta magnitude, os quilombolas são diretamente os mais afetados. “Sempre que acontece algo desta natureza, a situação se agrava nos quilombos, que desta vez foram afetados de duas formas. Primeiro, em suas estruturas físicas, porque não há recursos para atender este povo que sempre está à mercê de investimentos públicos. E depois, ficamos sem possibilidade de locomoção. Não há como ir buscar alimentação. E pior, quando conseguimos chegar nas cidades, muitas vezes as prateleiras de doações já estão vazias”, diz ele em consonância com a fala de Teresinha.

Uma das propostas de Potácio é que haja uma linha de crédito especialmente voltada às comunidades quilombolas, que sofrem com os feitos do agronegócio. Além disso, como pauta prioritária, ele destaca a regularização de muitos destes territórios pelo governo federal.

Nesta situação emergencial, foram destinadas 18 mil cestas básicas do Ministério da Igualdade Racial para atender seis mil famílias em comunidades quilombolas sulistas. Porém, novamente, duas questões surgiram, como bem aponta Potácio: a dificuldade de locais para armazenamento destes alimentos na área rural, uma vez que está arrasada, e o problema da distribuição destes produtos, com a falta de acesso aos territórios quilombolas. “A dificuldade em fazer com que os alimentos cheguem é muito grande”, diz ele.

crédito Márcio Oliveira

Para o líder quilombola, o Rio Grande do Sul já tem uma lei estadual, a 11.731, sobre a regularização fundiária de áreas ocupadas por remanescentes de comunidades de quilombos, que, segundo ele, se fosse cumprida já ajudaria em muito a sanar os impactos desta crise climática nestes territórios.

José Alex Borges Mendes, coordenador executivo da Conaq na região Sul, reforça a ideia de que os líderes quilombolas tiveram que fazer um ofício para que as comunidades fossem atendidas. “Demorou muito, mas chegaram”, conta ele, lembrando a dificuldade em retirar os moradores de Arroz do Meio e São Roque, regiões fortemente afetadas pelas chuvas. Mendes conta o caso de um quilombola em São Roque que estava com a perna quebrada e mesmo com a necessidade emergencial de atendimento, foram três dias até que ele pudesse ser resgatado e levado ao hospital.

líder quilombola Alex coordena distribuição de alimentos
crédito Márcio Oliveira

Para Mendes, houve racismo ao não priorizarem as comunidades quilombolas no Rio Grande do Sul. “Não há resposta do governador Eduardo Leite a estes locais que estão sujeitos a novas avalanches”, diz ele. Ao ser questionado sobre a ajuda aos quilombolas de Sarandi, em Porto Alegre, o governador Eduardo Leite afirmou que “o poder público não tem estrutura suficiente para atender em todas as pontas”.

Sobre essa fala, Mendes dispara: “as autoridades devem tratar todos os grupos de forma igualitária. O governo estadual e o Exército têm pessoal suficiente para atender essas populações que se encontram em situação de risco. É preciso haver um planejamento para que haja uma ação imediata. Não vamos esperar que ocorra o pior”, afirma ele a Geledés.

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