Racismo e eugenia num ônibus da Zona Sul do Rio

A atriz e jornalista Tracy Segal escreveu uma crônica para o Favela 247 descrevendo a conversa entre a cobradora e o motorista de um ônibus da Zona Sul do Rio, que comentavam sobre um suposto assalto cometido por um jovem negro que corria ao lado do coletivo: “Quando a trocadora de ideias soltas soou a frase de misericórdia: ‘Eu castrei minha gata, porque não podemos castrar essas mães? Mulheres, mães de filhos da puta, futuros degenerados, e resolver o problema no ventre?'”. Leia na íntegra

Por Tracy Segal Do Brasil247

Barriga preta

Como um mal súbito a voz do passageiro corta a modorrilha da viagem: “Olha lá. Ah lá! pegou. ele pegou a mulher”. Frases em stacatto.

Os outros viajantes se levantam e veem um jovem negro que acabou de roubar uma bolsa. A cena daquele bicho que segura os ganhos da sua caçada se afasta de nossas vistas na segurança do ônibus safari.

No burburinho do ônibus capto frases soltas que aos poucos se organizam numa conversa sobre como jovem negro deveria ir preso. A trocadora sentada em sua baia reclama os abusos desses jovens delinquentes invocando a redução da maioridade penal. O dialogo entre esta moça negra de cabelos devidamente alisados com o motorista ganham protagonismo num volume de palco. Uma cena.

– Esse moleque não estuda por que não quer.

– Deveria ir sim preso pra aprender.

– Um jovem delinquente.

A palavra “DEUS” escavada na tampa que cobre o dinheiro a frente da trocadora enquanto o motorista evocava a família.

– Meus filhos são bem criados, todos tem a chance de ser do bem.

– Todos tem a chance.

Eu me levanto e pergunto:

– O senhor trabalha de motorista por que quis? Não estudou o suficiente pra ser juiz ou médico, foi isso? A senhora senta 12 horas por dia, olhando deus na tampinha dos trocados, pra receber uma parca quantia de dinheiro que mal dá pra alisar seus cabelos pra tentar parecer a Beyonce ou pra tentar em vão parecer ser menos negra, por que escolheu isso pra sua vida? Foi de livre e espontânea vontade?

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Quis dizer mas calei. Quando a trocadora de ideias soltas soou a frase de misericórdia: “Eu castrei minha gata, porque não podemos castrar essas mães? Mulheres, mães de filhos da puta, futuros degenerados, e resolver o problema no ventre?”. Uma nova lei do ventre mas agora do ventre vigiado! Faremos uma ultrassonografia para avaliar se o feto é criminoso. Uma vez confirmada a culpa do embrião, futuro marginal, extirpamos mais um cancerzinho de habitar as praias cariocas em busca de um lugar ao sol. Esse solilóquio ecoou os deputados evangélicos antiaborto e pró eugenia, onde uns fetos tem valor inestimável, enquanto outros são só refugo e portanto devem  ser descartados.

O ônibus da tarde com seus velhinhos brancos aposentados da zona sul seguiu em silêncio.

Tracy Segal é atriz, dramaturga, diretora e jornalista. Escreveu para o Blog do Morris, na Folha de S. Paulo, e faz bacharelado em Estética e Teoria do Teatro na Unirio.

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