Radicalizando na inclusão de negros

Entrevistar a advogada de formação Luiza Trajano é, sem dúvidas, experiência das mais gratificantes para um jornalista, não só pelo aprendizado de vida que a experiente administradora da rede Magazine Luiza transpassa, mas também pela forma simples e direta na qual ela conduz a entrevista.

Por Mauricio Pestana Do Revista Raça

Foto: Reprodução/ Raça

Podemos observar que essa também foi a marca empregada na sua rede que nasceu em Franca, interior de São Paulo, e se transformou numa das maiores redes varejistas do Brasil. Nessa entrevista exclusiva da RAÇA a veterana dirigente mostra porque sempre esteve à frente de seu tempo, não só na área tecnológica por ter se tornado o primeiro modelo de comércio eletrônico de todo o mundo,em 1999, mas também na área de igualdade racial e de gênero, pois é idealizadora do grupo As mulheres do Brasil, e hoje é uma árdua defensora de ações afirmativas e de reparação para negros e negras, como demonstra na entrevista a seguir.

Indo direto ao assunto e à polêmica que ainda resiste na sociedade brasileira, a senhora é a favor de cotas raciais no mercado de trabalho?
Em primeiro lugar, as pessoas precisam entender exatamente o que são as cotas raciais, há muita confusão a respeito do assunto e muita desinformação; quando as pessoas entendem exatamente o que são as cotas é difícil elas ficarem contra.

Foto: Reprodução/ Raça

Explique melhor, então, na sua concepção, o que são as cotas e o que mais as pessoas precisam aprender?
A primeira coisa é entender que cotas são um processo transitório, é para acertar um erro histórico, uma desigualdade que muitas vezes foi intensificada por falta de uma política pública adequada que pudesse reverter um processo de desigualdade e que se a gente não fizer alguma coisa essa desigualdade não irá acabar nunca, este é o ponto básico. A segunda e talvez mais importante coisa a entender é que uma empresa só tem a ganhar reproduzindo em seus quadros a diversidade existente na sociedade. Os ganhos não são apenas financeiros, mas a diversidade permite que vejamos o mundo com outros olhos, melhorando o clima interno como um todo.

Mas os críticos dessa ação acham que é uma medida muito radical e extrema para o Brasil. E você?
É um erro achar isso, se você não tomar uma atitude como colocar cotas raciais para mudar o quadro racial das empresas você vai levar 100 anos pra fazer as coisas andarem para os negros e quando falo isso não falo só no trabalho, falo em todos os níveis.

Como assim?
Simples: dê uma olhada na questão escolar. A defasagem escolar com relação ao negro é gigantesca, é muito desigual e se a gente não fizer alguma coisa vai continuar desigual; até a minha próxima geração, meus netos irão viver num pais desigual como é hoje, e não é essa herança que eu quero deixar. Então, quando você descobre que existe uma medida transitória que pode acelerar o processo você muda totalmente a forma de pensar. Quando você descobre que as coisas melhoraram você muda, porque eu também não concordo com cotas sem mudar a consciência.

Mudar consciência, essa é uma postura forte. Explique melhor isso.
Uma empresa como a nossa em que as mulheres representam mais de 50% dos nossos 20 mil funcionários, não poderíamos fazer vista grossa a qualquer tipo de discriminação em especial contra negros.

E como a senhora iniciou o trabalho com relação à discriminação racial?
Um dos primeiros passos nesse sentido foi a discussão do tema da inclusão racial com os 1.200 gestores de primeira linha da rede, enfatizando a necessidade de assumir na prática a integração de trabalhadores negros, e os resultados apareceram rapidamente. Numa das lojas de Campinas, no interior de São Paulo, administrada por um gerente negro, a seção de produtos eletrônicos pesados (geladeiras, freezers etc.), que responde por 70% das vendas, é toda composta por afrodescendentes. É uma das unidades mais bem-sucedidas da companhia.
Há 2 anos eu trabalho com esse nível de consciência, então agora eu quero estagiário negro, eu quero que em cada loja tenha treineer negro, eu quero 3,  4 negros em cada loja  e se a gente não chegar nisso a gente vai parar…tem que se virar.

Um dos argumentos dos que são contrários a medidas como cotas no mercado de trabalho é que elas seriam um problema parecido aos encontrados em relação a pessoas portadoras de necessidades especiais: existe a lei mas há muita dificuldade de encontrar o profissional para ocupar esse espaço. É verdade?
Meu filho, tem que ter cotas, a desculpa será sempre a mesma ou arrumarão outra, é que igual à dos deficientes, antes da lei você não achava, não encontrava. Assim que baixou a lei, fomos obrigados a achar. Temos que dar um salto e tem que ter treineer, estagiários, a cada 30 tem que ter 2, 3.

O que outros dirigentes de empresa acham dessa sua posição, a senhora conhece alguma empresa ou dirigente com essa posição arrojada e avançada como a da senhora?
Sim, são poucos mas já tem gente se destacando na defesa da igualdade; no caso específico de mercado, posso apontar o Theo van der Loo, da Bayer. Agora em termos de empresa eu destacaria o Banco Santander que está fazendo um trabalho fantástico em sua corporação. Tudo que eles fazem eles apresentam com números muitos consistentes, e tem trabalhos muito interessantes também com relação a assédio sexual, de violência contra mulheres; estão entre as melhores empresas para as mulheres trabalharem. Sabe o que eles fizeram? Eles têm um cartaz onde você tira foto quando chega lá. Se vocês virem os vídeos que eles estão fazendo com a própria equipe e eles mandam no whatsapp de todo mundo, até peguei um nosso, eles divulgam no youtube, pra mim não tem ninguém fazendo igualdade como eles, nós fazemos, mas eles têm metas e trabalham com diversidade. Por exemplo, tem cotas de treineer para negros trabalharem lá, estagiários negros.

E esses dois anos em que a senhora vem trabalhando essa questão na sua rede de lojas, já tem dado para notar a diferença?
Poderia te dar alguns exemplos dessa mudança, mas citarei aqui algo que me deixou bastante emocionada e animada. Eu fiz um curso de segundo nível de gestor (gerente) e fiquei muito feliz, porque quando eu chamei ao palco os negros, tínhamos mais de 120 negros líderes.

+ sobre o tema

Mundo não aprendeu nada com genocídio de Ruanda, diz ativista

Em uma das cenas do filme "Hotel Ruanda" (2004),...

Uma festa que faz blackface coletivo na Espanha quer se tornar Patrimônio Cultural da Humanidade

Um "blackface" coletivo *no município de Alcoy, em Valência...

O 20 de novembro e o negro no Brasil de hoje

Kabengele Munanga é professor brasileiro-congolês e doutor em Antropologia...

para lembrar

Sargento que gravou homens agonizando poderá ser expulso da PM

“A violência policial está fora de controle”, afirma advogado...

Marcha internacional reúne movimentos na luta contra genocídio de negros

Helena Martins – Repórter da Agência Brasil Nesta sexta-feira (22), negros...

Nas margens do capitalismo, sentamos e choramos

O livro é de Paulo Coelho, “Nas margens do...

Vidas negras importam, vidas negras importadas e vidas negras expropriadas

“Pela primeira vez na história humana, o nome Negro...
spot_imgspot_img

OAB suspende registro de advogada presa por injúria racial em aeroporto

A Ordem dos Advogados do Brasil (OAB-MG) suspendeu, nesta terça-feira (25), o registro da advogada Luana Otoni de Paula. Ela foi presa por injúria racial e...

Ação afirmativa no Brasil, política virtuosa no século 21

As políticas públicas de ação afirmativa tiveram seu marco inicial no Brasil em 2001, quando o governador do Rio de Janeiro Anthony Garotinho sancionou...

Decisão do STF sobre maconha é avanço relativo

Movimentos é uma organização de jovens favelados e periféricos brasileiros, que atuam, via educação, arte e comunicação, no enfrentamento à violência, ao racismo, às desigualdades....
-+=